Raízes - parte 2
- Alice Castro
- 22 de jun. de 2022
- 14 min de leitura

Oi, gente! Hoje trouxe pra vocês a segunda parte do conto que eu lancei na semana passada como um exercício de escrita criativa. Se você ainda não leu a primeira parte, pode conferir o começo da história aqui: Raízes - parte 1.
Raízes - parte 2
Ingrid escolheu uma noite quase sem luar para a sua fuga. Se alguém decidisse persegui-la naquela escuridão, demoraria um tempo considerável para encontrá-la entre as plantas. Fora isso, ela não precisou de grandes preparativos para a partida. Já roubara um pouco de comida e água da cozinha nos dois dias anteriores e não tinha mais nada para carregar além da roupa do corpo. Idealmente, Ingrid também levaria alguma arma improvisada escondida em um dos bolsos internos que ela costurou no seu macacão, mas acabou decidindo que os riscos de ser descoberta tentando surrupiar uma faca do refeitório seriam maiores do que os benefícios de ter uma arma tão frágil nas mãos. De qualquer forma, a prisioneira não estava planejando se arriscar em um combate corpo a corpo no campo de girassóis. Se encontrasse algum problema, Ingrid sabia que o melhor a fazer seria correr ou se esconder, não lutar.
Tudo o que faltava era colocar o plano em prática, e ela estava ansiosa para testá-lo. Não aguentava mais ter pesadelos com criaturas terríveis e patriotas armados perseguindo-a entre as plantas. Mesmo que tudo desse errado naquela noite, ela pelo menos teria alguma ideia do que estava enfrentando nas suas próximas tentativas de fuga. O mistério teria um fim, e seu inimigo, um rosto.
Às onze horas da noite, quando a maioria dos exilados já tinha se recolhido para dormir e as funcionárias já não circulavam mais pelos cômodos do térreo, Ingrid saiu do seu quarto para conferir a movimentação. Como esperado, todos os dormitórios estavam fechados e as luzes do corredor, apagadas. Se não fosse pela presença fantasmagórica do número três, que estava dando sua caminhada habitual para combater a insônia, a casa estaria deserta. Mas Ingrid tinha certeza de que o exilado não tentaria denunciá-la ou bloquear o seu caminho. De alguma forma, aquele lugar transformava todos os prisioneiros em criaturas que não tinham forças para reagir ou se importar. Eram meros observadores.
Cada vez mais ansiosa para sair da casa, Ingrid se colocou em movimento. Passou pelo adolescente no corredor antes de descer as escadas. Por um segundo, seus olhos se encontraram e ele balançou a cabeça para indicar que não concordava com a sua decisão, mas não tentou convencê-la a voltar ou impedir seu progresso. Em pouco tempo, ela estava no quintal, diante dos temidos girassóis, os pés plantados sobre a linha que marcava o final do gramado e o início do vasto campo. As cabeças amarelas das plantas pareciam encará-la com expectativa, desafiando-a a ir em frente. Ela atravessou o limite do jardim.
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Ingrid caminhou por alguns minutos sem ser perturbada, encarando fixamente os próprios sapatos pretos que deixavam marcas profundas na terra úmida e contando as batidas desritmadas do seu coração para distrair os pensamentos caóticos que tentavam fazê-la recuar. Tudo estava calmo. Calmo demais. Desconfiada, ela se virou e levantou a cabeça para conferir se alguém a seguia ou se alguma luz suspeita fora acesa na casa. Não viu nada alarmante e continuou a caminhar.
Avançou sem encontrar nenhum obstáculo e estava fazendo progresso, deixando a casa para trás. Apesar disso, não se sentia satisfeita, mas inquieta. O silêncio artificial no interior do campo de girassóis não era natural e a perturbava. Quando estava no seu quarto no interior da casa, ela conseguia ouvir os barulhos dos grilos e das corujas. Ali, parecia que alguém tinha coberto seus ouvidos com um tecido grosso. Era tão silencioso que ela podia ouvir o próprio coração, cada vez mais alto, impulsionado pelo crescente nervosismo. Mas se esforçou para ignorar tudo isso e andar mais rápido. Ela tinha certeza de que, quando cruzasse o campo de girassóis, todas as suas inseguranças perderiam força. Era aquele lugar que criava uma aura de medo ao redor das pessoas. Ela só precisava atravessá-lo e estaria livre.
Depois de uma hora de caminhada, Ingrid fez uma pausa para beber água, sentando-se no chão. O silêncio estava cada vez mais denso e ela sentiu a garganta apertada para engolir. Queria ficar mais alguns minutos descansando, mas a vontade de sair daquele maldito labirinto o quanto antes falou mais alto e ela começou a se colocar de pé. Voltou a se abaixar quando ouviu um som alto e estridente, muito próximo e vindo de todas as direções. Depois de passar tanto tempo mergulhada em um silêncio mortal, o barulho era insuportável. Parecia que alguém estava segurando uma caixa de som no volume máximo sobre a sua cabeça.
Ingrid se encolheu instintivamente e apertou as mãos sobre os ouvidos para bloquear os guinchos agudos, muito parecidos com o rangido de centenas de dobradiças enferrujadas gritando. Aquele deveria ser o alarme. Desesperados, seus olhos procuravam identificar de onde o som estava vindo. Ela precisava encontrar uma forma de desativar as sirenes ou correr para longe. Antes que ela tivesse que tomar a decisão, entretanto, o silêncio denso voltou a se instalar, deixando-a com um apito desagradável ecoando nos ouvidos.
Lentamente, Ingrid corrigiu sua postura e olhou para cima, esperando ver algum helicóptero atravessando o céu escuro, caçando-a entre as plantas com um holofote. Mas não foi essa visão que a fez recuar assustada. A prisioneira acabava de perceber que a paisagem ao seu redor se transformara naqueles breves segundos de desorientação. Os girassóis, que há pouco estiveram virados para a casa, agora pareciam ter se dado conta de que havia uma intrusa entre eles. Todas as cabeças amarelas estavam voltadas para Ingrid. As plantas formavam um círculo fechado ao seu redor, seus miolos imensos fixos no rosto da garota, como pupilas gigantes registrando seus movimentos.
Ingrid encontrara a armadilha. Não estava escondida dentro do campo, como ela imaginara, mas camuflada nas próprias plantas. Os girassóis eram falsos, meros suportes para câmeras com sensores de movimento. Isso explicava o barulho que Ingrid ouvira há pouco. Os guinchos provavelmente escaparam das dezenas de caules metálicos quando eles giraram para seguí-la.
Ainda encolhida no chão, a fugitiva permaneceu imóvel. Fechou os olhos e se concentrou na própria respiração, lutando para combater a sensação de pânico que ameaçava dominá-la. Esperava que um dardo venenoso fosse lançado contra ela a qualquer momento, para incapacitá-la enquanto algum patriota aparecia para arrastá-la de volta até a casa. Quando isso não aconteceu nos primeiros dez segundos, ela ficou ainda mais nervosa. Por que diabos nenhum alarme estava soando, nenhum helicóptero rondava sobre a sua cabeça, nenhum cão de caça fora solto em seu encalço? Se os girassóis não podiam fazer nada além de observar, qual era o real perigo que ofereciam? O que assustara tanto os outros exilados a ponto de fazer com que eles desistissem de tentar escapar, a ponto de fazer com que não conseguissem nem mesmo encarar as plantas? Aquilo era uma espécie de tortura psicológica?
Ingrid não sabia se era seguro se mover, mas teria que descobrir em algum momento. Não tinha nenhuma intenção de ficar ali parada a noite inteira, esperando que alguém a encontrasse. Talvez ela estivesse muito perto de alcançar o final do campo amaldiçoado. Não podia se render agora. Precisava acreditar que ainda havia alguma chance de driblar a vigilância daquelas plantas metálicas. Usaria a sua inteligência para se adaptar ao novo desafio. Ela já fizera isso antes. Muitas vezes.
Seu cérebro rapidamente rabiscou algumas alternativas. Se ela cobrisse o seu rosto, talvez as câmeras não fossem capazes de identificá-la. Além disso, o macacão era escuro e poderia servir como uma espécie de camuflagem à noite. Talvez passasse despercebida se tentasse engatinhar de bruços na terra, mantendo o rosto fora de vista e fazendo movimentos menos previsíveis. Ela arriscou um impulso com os cotovelos. O chiado dos girassóis voltou a perturbá-la, indicando que ainda podiam vê-la e obrigando-a a cobrir novamente os ouvidos.
Assim que se recuperou, Ingrid tentou sujar o rosto com terra. Também não funcionou. Tirou os sapatos e o macacão, acreditando que os patriotas poderiam ter escondido algum sensor nas roupas. Nada. Tentou quebrar uma das plantas arrancando sua cabeça amarela, mas o girassol metálico permaneceu intacto. O caule também se mostrou resistente, tudo o que ela conseguiu fazer tentando puxá-lo para fora da terra foi machucar as mãos e tirar do lugar algumas folhas de mentira, que a garota despedaçou de raiva.
Finalmente, Ingrid se cansou de tentar evitar as plantas e decidiu que o melhor que poderia fazer agora era tentar correr para fora do campo. Os girassóis eram como os exilados, meros observadores. Se ela fosse rápida o bastante, os patriotas não conseguiriam alcançá-la a tempo. Cobrindo os ouvidos com as mãos, ela disparou em meio às plantas. Mas não foi muito longe. Ingrid logo tropeçou em alguma coisa e perdeu o equilíbrio. Ela caiu sobre a terra e tentou se levantar para continuar, mas seus pés estavam presos. Ela podia sentir algo como um animal rastejante se enroscando pela sua perna, subindo rapidamente até a cintura, pressionando sua pele com tanta força que começava a bloquear a passagem do sangue. Ingrid se sentou e atacou a coisa com as mãos, tentando enxergar, tentando empurrar aquilo para longe. Era uma espécie de cipó verde que saía da base dos girassóis e não parava de crescer, imobilizando-a.
Desesperada, Ingrid tentou chutar e se arrastar para se soltar dos tentáculos, mas os cipós seguraram seu tronco e seus braços contra a terra, mantendo-a imóvel. Um deles envolveu o seu pescoço e começou a apertar a garganta, asfixiando-a. Sua visão ficou embaçada e começou a escurecer nas bordas. Ela lutou para respirar, para se livrar, mas só conseguiu desperdiçar mais oxigênio se debatendo. Estava prestes a perder a consciência quando sentiu uma alfinetada na parte interna do braço direito, seguida de uma ardência incômoda, que rapidamente começou a se espalhar pelo seu corpo, amolecendo-o, sedando-o. O aperto do cipó que esmagava seu pescoço reduziu minimamente para permitir a passagem de ar, mas ela já não tinha forças para lutar contra os cipós, não sabia mais onde estava, não conseguia raciocinar. Suas pálpebras começaram a pesar e ela fez o que pôde para manter os olhos abertos, mas não conseguiu resistir por muito tempo. Apagou.
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Ingrid acordou no seu quarto no novo abrigo. Estava tonta, com a boca ressecada. A parte de trás da sua cabeça latejava. Não sabia exatamente o que estava fazendo ali e porque se sentia tão pesada. Ela conseguiu se sentar na cama com dificuldade, mas voltou a se encolher contra o travesseiro quando sentiu pontadas ainda mais fortes perto da nuca.
_ Você não vai conseguir se mexer por alguns dias. - uma voz masculina avisou, assustando-a com a proximidade. O som era familiar, mas ela não conseguiu ligá-lo imediatamente a um rosto.
Tentou encontrar a pessoa que estava falando. Mudou de posição na cama e o mundo girou com ela. Assim que conseguiu voltar a se estabilizar, se deparou com o rosto do jovem de cabeça raspada, que agora ela lembrava ser o número três. Ele arrastara a cadeira que normalmente ficava na varanda para dentro do quarto e estava sentado a poucos centímetros da cama de Ingrid, de costas para o campo de girassóis. Incomodada com a proximidade, ela recuou.
_ Eu não vou te machucar. Aqui dentro da casa, você está segura.
Ingrid ficou em silêncio, processando a fala do garoto. Seu raciocínio estava arrastado e ela demorou alguns segundos para encontrar o significado das palavras e combiná-las dentro da frase.
_ O que aconteceu? - ela perguntou, sentindo a língua pesada dentro da boca.
_ Você tentou fugir. Os girassóis te pegaram.
Subitamente soterrada por uma avalanche de memórias desagradáveis da noite anterior, Ingrid reviveu o momento em que os tentáculos malditos das plantas de mentira começaram a se enroscar pelo seu pescoço. Por reflexo, levou a mão à garganta. A pele estava dolorida onde o cipó a segurara, mas o que mais a assustou foi a mancha roxa no braço direito que se revelou quando ela o ergueu. O número três acompanhou o seu olhar até o hematoma.
_ É. O sedativo. Essa é a pior parte.
Ingrid permaneceu em silêncio. Ela discordava. O sedativo não parecia tão ruim em comparação com o guincho ensurdecedor dos girassóis e com o aperto letal dos cipós. Ele tinha dado um fim àquela tortura.
_ Você deve estar pensando que o pior foram as plantas. Eu também tive essa reação no começo. Então descobri o que o sedativo realmente faz. E isso me assustou muito mais do que os girassóis.
Ingrid não conseguia entender porque o garoto estava tão falante agora, já que ele se recusara a dar explicações quando ela lhe perguntara sobre o campo de girassóis. Se ele tivesse decidido abrir a boca alguns dias atrás, poderia ter dito o que ela encontraria lá fora, poderia ter preparado a garota para a armadilha e Ingrid teria mais chances de escapar. Ela estava furiosa com o número três e virou as costas para ele. Não precisava de mais mistérios e frases vagas, queria respostas diretas. Sua cabeça estava doendo e ela ansiava desesperadamente por um copo de água. Por que ele não oferecia ajuda em vez de torturá-la com aquele tom superior de “eu te avisei”?
_ Desculpe. Você deve estar pensando que eu podia ter te poupado de tudo isso. - ele concluiu, percebendo a sua irritação.
Ingrid permaneceu virada para o outro lado, tentando se concentrar nas marteladas da sua dor de cabeça para silenciar as palavras do garoto.
_ Eu te disse pra não ir. Mas não adiantou. Mesmo que eu tivesse te contado tudo, você teria tentado escapar de qualquer jeito. Não teria? Você precisava tentar, descobrir o que estava lá fora com os próprios olhos. Somos todos iguais, garota. Por isso nos enterraram aqui nesse inferno. E eu sei que você vai tentar sair de novo. Mesmo agora que sabe contra o que vai precisar lutar.
_ Me deixa. - Ingrid respondeu apenas, querendo acabar com aquele monólogo irritante.
_ Pense bem no que está pedindo, você não quer realmente que eu vá embora. Vai precisar de mim enquanto se recupera. As funcionárias não vão te ajudar.
Apesar da raiva que inflamava o seu orgulho, Ingrid precisava admitir que não conseguiria deixar a cama naquele estado e permaneceu calada. O número três tomou isso como uma permissão para ficar.
_ Eu vou buscar água. - ele parou perto da porta e se virou. - Não tente levantar, vai ser pior.
Ela obedeceu. O garoto não demorou a voltar com um copo cheio, firmando as mãos trêmulas de Ingrid com as suas para que ela não virasse tudo na cama. Depois disso, sentindo uma leve pontada de gratidão, ela aceitou que o número três voltasse a se sentar na cadeira ao lado da sua cama sem protestos.
_ Você quer dormir agora? - ele perguntou. - Vai ajudar a melhorar a tontura.
Ingrid estava se sentindo um pouco sonolenta e o silêncio faria bem para a sua dor de cabeça, mas ela tinha medo de acordar e descobrir que o garoto não só tinha ido embora como não estava mais disposto a falar o que sabia. Ela tinha que mantê-lo ali.
_ Não. Me conta o que você sabe. Tudo. - ela reforçou, sentindo a garganta dolorida com o esforço de fazer as palavras saírem.
O número três encarou os joelhos com uma expressão vazia. Quando ela estava começando a se preocupar com o seu silêncio prolongado, ele disse:
_ Eu não te falei sobre os girassóis porque você tinha que descobrir o que eles são por conta própria, pra entender o que realmente torna esse lugar uma prisão e porque parece que a gente não está tentando realmente escapar daqui. Além disso, você não acreditaria em mim se eu dissesse o que o sedativo pode fazer antes de experimentar os efeitos dele no seu organismo. Pode parecer que eu estava sendo um idiota, mas eu só fiz isso porque sabia que ia ser melhor… depois. Antes de me olhar com essa cara, me escuta até o final, tá bem?
“Como eu disse, o pior desse abrigo não são os girassóis. Eles são terríveis, mas nós também somos. Estamos aqui porque chegamos muito perto de fugir das outras prisões. Somos teimosos, persistentes. A gente poderia testar infinitos novos jeitos de desativar aquelas coisas, apesar de que tudo o que os outros exilados tentaram até hoje falhou. Fogo, água, força bruta, cavar até alcançar os cabos subterrâneos pra desligar as plantas, nada disso deu resultado. Os girassóis parecem indestrutíveis."
O garoto fez uma pausa. Passou a mão nos olhos.
_ Mas tem que ter algum jeito, não é? Uma solução que ninguém testou. É o que eu pensava, é o que nos faz continuar voltando até lá. Mesmo que demorasse anos, algum dia, um exilado encontraria a resposta. Destruiria essa armadilha e conseguiria escapar. E, sim, eu ainda acredito que isso seria possível… se não fosse pelo sedativo.
_ O que o sedativo… - Ingrid começou, ansiosa para chegar logo ao ponto. Ela estava muito cansada para acompanhar todo o raciocínio do número três.
_ Você já viu o violino na sala de música? - o número três a interrompeu. - Com as cordas estouradas?
Ingrid concordou com um movimento mínimo da cabeça.
_ Foi o número sete que arrebentou as cordas. Ele era violinista, tocava na orquestra antes de vir parar aqui. Quando chegou no abrigo, passava horas com o violino. Alguns de nós ficávamos no corredor escutando, era impressionante, muito bonito. Então, como todos nós, ele se cansou desse lugar e tentou fugir. Uma, duas, cinco vezes. Depois da quinta vez, assim que conseguiu sair da cama, a primeira coisa que ele quis fazer foi descer até a sala de música. Ele segurou o violino como sempre e se preparou para começar mais um dos seus concertos solitários, quando percebeu que não sabia o que estava fazendo. Ele tinha se esquecido de como tocar.
_ Impossível. - Ingrid sussurrou.
_ Escute. Furioso, ele pensou em quebrar o violino, mas não conseguiu fazer isso. O instrumento era tudo para ele. O músico fez de tudo para forçar o próprio cérebro a se lembrar dos movimentos certos. Ele passou a noite inteira machucando as cordas sem conseguir acertar uma única nota. Até que elas estouraram. E algo na sua cabeça também se rompeu depois disso. Ele se tornou uma criatura indiferente, como os outros.
_ O que aconteceu?
_ Sabe por que ninguém lê na biblioteca? Porque a maioria se esqueceu de como fazer isso. Por que ninguém toca o piano? Porque, como o violinista, quem sabia tirar alguma melodia do instrumento já não consegue se lembrar nem mesmo da ordem das notas. E, o mais triste de tudo: por que os exilados não conversam entre si? Porque alguns já não têm mais sobre o que falar, e outros chegaram ao ponto de esquecer as palavras. Eles perderam as memórias do passado, das suas vidas antes de se tornarem exilados. Tudo o que eles lembram agora é da prisão. E alguém que não tem memórias de um dia ter sido livre não pode sentir falta da liberdade, não é?
“É isso o que o sedativo faz, garota. Ele apaga as suas memórias boas, aquelas que te dão motivos para continuar tentando escapar. A cada tentativa frustrada de fuga, você vai perder alguma coisa essencial, que faz parte de você. E quando tudo isso for embora, você não vai mais querer escapar. Porque não vai ter mais nada de valor aí dentro.”
O número três voltou a encarar os joelhos, agora com o rosto vermelho e os olhos quase transbordando. Ingrid sentiu um peso gelado no estômago e pensou que ia vomitar, mas conseguiu respirar fundo e controlar a náusea.
_ Todos… os exilados daqui estão nesse estado? Menos você?
_ Eu sou o mais novo no abrigo depois de você. É por isso que eu ainda tenho algumas memórias. - a voz do número três falhou. - E eu não sei se o melhor a fazer é desistir de tentar escapar pra salvar o que sobrou, ou perder tudo e continuar tentando sair até o ponto de ficar como os outros. Esquecer minha família, meu nome, as coisas que eu gostava de fazer antes… desaprender a ler, a falar. É difícil dizer qual das duas alternativas é a pior.
O número três secou os olhos, irritado. Ingrid quis consolá-lo, mas qualquer coisa que ela dissesse soaria mentirosa naquele momento. Ela pensou em como seria esquecer de sua mãe, do apartamento que as duas dividiam, do gosto do seu bolo de limão favorito, das caminhadas até o parque para alimentar os peixes do lago, das músicas que ela mais gostava de ouvir quando pegavam a estrada até a praia. De que memórias o número três se esquecera? De quais ele ainda se lembrava? O que ela acabara de perder depois de ter sido envenenada com o sedativo?
_ Você vai demorar alguns dias para perceber o que está faltando. - ele murmurou, como se fosse capaz de ler os pensamentos de Ingrid. - Mas, no começo, é mais fácil encontrar os buracos na memória, porque ainda temos pontos de referência entre eles. É como um quebra-cabeça. Se arrancamos algumas peças no centro, as que estão em volta do espaço vazio nos ajudam a perceber que a imagem está incompleta. É a forma dos patriotas de tornar tudo ainda mais doloroso. Afinal, se o violinista não se lembrasse de que um dia tinha tocado o violino, ele não sentiria a dor da perda. Quando ele desceu até a sala de música, ele se lembrava de, no passado, ter sido apaixonado pelo instrumento, mas não sabia mais o que fazer com ele. Depois disso, ele passou a entrar no campo de girassóis todas as noites. Ele não estava mais tentando fugir, só queria esquecer todo o resto.
-
Ingrid demorou duas semanas para descobrir a peça que estava faltando. Era algo pequeno, mas significativo: a foto de seu pai, que ficava pendurada na parede do quarto da sua mãe, ao lado da janela. Era a única lembrança do marido que Mirna conseguira carregar na mochila quando teve que cruzar a fronteira grávida depois da guerra. Ingrid era capaz de se lembrar do local exato da fotografia no apartamento quando fechava os olhos, via com facilidade a moldura de madeira escura do porta-retrato e o papel de parede decorado com pequenos losangos por trás, mas a fotografia em si desaparecera para sempre. Nos novos pesadelos que assombravam a garota, o rosto do pai na imagem era substituído com frequência por um miolo de girassol. Como os outros exilados, Ingrid passou a evitar as janelas do abrigo.
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