Exercício de escrita #5: mesmo espaço, outros olhos
- Alice Castro
- 28 de set. de 2024
- 6 min de leitura

O senso comum nos ensina que a imparcialidade é uma característica inerente à honestidade, mas, se pararmos para pensar, não existe nada mais desonesto do que uma pessoa que afirma ter a capacidade de ser completamente imparcial. Impossível. Ser humano é ser parcial. A forma como enxergamos o que nos cerca é moldada por centenas de fatores, como a nossa experiência de vida, sentimentos, opiniões, crenças, idade, gênero, condição de saúde, classe social e educação. Duas pessoas, por mais parecidas que sejam, jamais terão exatamente a mesma percepção sobre o seu contexto. Até uma mesma pessoa, em momentos diferentes do dia, pode sofrer mudanças bruscas de humor que transformam a maneira como ela percebe os seus arredores. Quem nunca acordou sentindo que ia ter um dia maravilhoso e foi dormir arrependido de ter se levantado da cama?
Por isso, a literatura nos ensina que a forma como uma história é contada depende de quem a narra. O mesmo enredo pode mudar completamente de tom se for apresentado por um narrador sério ou cômico, ou por diferentes personagens que fazem parte dele. Se Harry Potter e a Pedra Filosofal fosse narrado da perspectiva de Dumbledore, com certeza seria outro livro, muito mais sombrio e adulto.
O exercício de hoje é uma brincadeira com essa mudança de ângulo. A ideia é descrever um mesmo espaço do ponto de vista de dois personagens diferentes, mostrando, apenas pela escolha de palavras dos narradores, o que eles estão pensando e sentindo. Reforçando: não vale entrar dentro da cabeça dos personagens, o desafio é transmitir as emoções deles somente pela descrição do ambiente externo. É isso o que eu vou tentar fazer hoje, para desenferrujar minha escrita depois de tanto tempo de sumiço no blog. Se gostou da ideia e quer ver o resultado desse experimento, vem comigo.
Espaço: jardim, festa de aniversário de criança.
Personagem 1: mãe da aniversariante.
Personagem 2: vizinho da mãe da aniversariante.
Personagem 1:
Com os rostinhos vermelhos de empolgação, as crianças estão sentadas em semicírculo, de pernas cruzadas sobre o gramado macio, os olhos brilhantes admirando a habilidade do palhaço para transformar balões em todo o tipo de animais. Amassa, dobra, puxa. Surge um coelho, uma girafa, um elefante. As pequenas mãozinhas aplaudem e alguns não conseguem conter exclamações de surpresa e risadas contagiantes. O palhaço, em cima de um palco improvisado, decorado com tecidos coloridos e tapetes, saltita com seus enormes sapatos amarelos, tirando flores de papel de seus bolsos enormes e oferecendo-as para os seus espectadores. Fazendo uma reverência exagerada, entrega a flor mais bonita para a aniversariante, que sorri sem jeito e fica com as bochechas ainda mais coradas.
Sem dúvidas, Pâmela é a garota mais bonita da festa. Seus longos cabelos negros estão arrumados em cachos impecáveis e ela usa um adorável vestido vermelho com um laço na cintura, que atrai os olhos impressionados de todos os convidados. O palhaço a convida para ajudá-lo com o próximo número. Pâmela sobe as escadas e o ajuda a esvaziar uma mala cheia de roupas curiosas e longas meias furadas, que divertem a plateia.
A poucos metros do espetáculo, algumas crianças que se assustaram com a fantasia do palhaço estão esperando na fila da pintura de rosto, acalmadas por pacotes de pipoca doce. A maquiadora é uma jovem fantasiada de princesa, com uma pequena coroa prateada fincada na peruca loura e um longo vestido azul coberto de glitter que lança raios de luz para todos os lados, hipnotizando as meninas. Com pinceladas delicadas, a mulher desenha um focinho rosado de coelho no nariz da garotinha de rabo de cavalo, que segura um espelho diante do rosto para acompanhar a transformação.
Outras crianças mais agitadas preferiram a cama elástica, e estão saltando como se quisessem alçar voo e conquistar o céu azul. É um lindo dia de verão, perfeito para festejar, ótimo para aproveitar a tarde ao ar livre. As mulheres, observando satisfeitas a alegria dos filhos, usam roupas claras e esvoaçantes. Confortáveis nas cadeiras de praia que foram espalhadas pelo jardim, conversam despreocupadamente sobre a nova reforma da escola e balançam as cabeças no ritmo da música infantil. Os homens passeiam pelo jardim, admirando os arbustos floridos e bem aparados e as árvores frutíferas ao fundo do quintal. Alguns fingem jogar futebol, com uma das mãos descansando no bolso da bermuda e a outra equilibrando o copo colorido de limonada. Vez ou outra, um deles solta uma piada deselegante um pouco mais alto do que deveria e é repreendido por um olhar afiado de sua respectiva esposa, que aponta as crianças para lembrá-lo de onde está.
Todos parecem felizes, aproveitando um domingo sossegado em companhia de amigos. Abanando o rabo, o cachorro cumprimenta os convidados, tentando conseguir alguns pedaços de salgadinho. Está lindo, de gravatinha azul e com os pelos bem escovados. As mesas também ficaram uma fofura, decoradas com pelúcias da galinha pintadinha e potes cheios de balas coloridas. O fotógrafo passeia pelo quintal, girando sua câmera pesada com destreza, registrando todos os momentos. Pâmela está radiante. A festa é um sucesso.
Personagem 2:
O calor derreteu rapidamente os cubos de gelo da limonada, deixando a bebida aguada e pouco refrescante. Os convidados bebem por educação, tentando puxar assunto com pessoas que não conhecem direito. As mulheres mais velhas falam da aniversariante, comentando sobre o vestido vermelho e chamativo demais. Um tom de pêssego seria mais adequado, uma das avós opina. A pobre menina, Paula ou Paola, parece uma caixa de presente, com aquele laço enorme pendurado na cintura. Está vermelha de insolação, como as outras crianças. Enfileiradas na grama pinicante que provoca coceira nas pernas, elas observam preguiçosas o palhaço, o homem mais desafortunado da festa, que cozinha dentro da fantasia folgada cheia de babados, a maquiagem escorrendo com o suor.
Não espanta que essa figura trágica tenha aterrorizado algumas crianças, que abriram o berreiro e precisaram ser consoladas pelas mães. As mulheres contornaram a crise subornando os filhos com pipoca doce e empurrando os pequenos mais medrosos para a fila da pintura de rosto, onde agora eles esperam com os olhos levemente avermelhados, fungando os narizes.
A princesa, com a peruca falsa e mal equilibrada na cabeça, está tentando pintar o rosto de uma garotinha de coelho, mas o desenho é tão genérico que poderia representar qualquer animal com um focinho e bigodes. A próxima criança, impaciente, já está pedindo a pintura de um tigre, e a maquiadora, observando a fila com preocupação, tenta convencê-la a mudar de ideia e escolher algo menos elaborado. Que tal um gato? O garoto não parece convencido.
Como a terrível trilha sonora de desenho animado, o sol não dá um minuto de trégua, e todas as mesas estão expostas, sem um único guarda-sol para poupar as cabeças dos convidados. As cadeiras são dobráveis, bambas e baixas demais, difíceis de sentar e mais difíceis ainda de levantar. Com manchas de suor marcando as camisetas, alguns pais tentaram se refugiar na sombra das árvores no fundo do quintal, o que os salvou temporariamente da desidratação e dos guinchos irritantes provocados pela fabricação ininterrupta de esculturas de balão.
O fotógrafo desorienta os convidados com flashes completamente desnecessários em plena luz do dia. Os adultos tentam em vão corrigir a postura para saírem mais apresentáveis nas fotos e dão sorrisos forçados, desconfortáveis ao lado de desconhecidos, sem saber se devem abraçá-los por educação, ou manter distância para não forçar intimidade. Enquanto estão distraídos com esse dilema causado pela câmera indiscreta, um cachorro babão aproveita para enfiar o focinho molhado nos pratos de salgadinho, sendo afastado discretamente por um dos garçons antes que consiga lamber um quibe ou mordiscar uma coxinha.
Inquietas em suas cadeiras que não param no lugar, as pessoas afastam o pote de balas e o que parece ser um pássaro azul de pelúcia do centro das mesas, tentando enxergar melhor o rosto de seus interlocutores do outro lado. Os gritos e as risadas estridentes das crianças dificultam qualquer conversa, mas algumas mães ainda conseguiram encontrar uma forma de ignorar a cacofonia para reclamar sobre a reforma da escola, assunto polêmico que dividiu as mulheres em dois grupos que se afrontam com alfinetadas enquanto os seus filhos estão aterrorizando o funcionário que ficou responsável por carregar a cruz do monitoramento da cama elástica. O rapaz não sabe se separa a briga causada pelo empurra-empurra na fila ou se resgata uma criança que acabou de bater a testa no cotovelo da outra em um salto mais alto do que o recomendado.
Enquanto isso, Paula/Paola ajuda o palhaço a esvaziar uma mala cheia de tranqueiras, a dona da casa observa a filha aniversariante em êxtase, alheia a todo o caos reinante, e um dos convidados, secando o suor do rosto com um guardanapo, pergunta: será que falta muito para o parabéns?
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