Raízes - parte 1
- Alice Castro
- 15 de jun. de 2022
- 7 min de leitura

Oi, pessoal! Há algumas semanas eu compartilhei com vocês um dos meus exercícios de escrita favoritos pra treinar a criatividade e se divertir escrevendo. Hoje - bem atrasada, mas a vida estava um pouco corrida, peço perdão - venho apresentar a primeira parte do conto que escrevi inspirada na imagem aí em cima. Semana que vem sai a parte 2, sem atrasos dessa vez haha. Boa leitura!
Raízes – parte 1
Quando os guardas arrancaram o capuz que cobria o rosto de Ingrid, quase cegando-a com a claridade repentina, ela finalmente teve uma oportunidade de examinar seus arredores com atenção. Seus olhos, ávidos para registrar informações que pudessem ajudá-la a escapar no futuro, foram surpreendidos por um cenário monótono assim que se adaptaram à luz. Do sol. Ingrid não soube como reagir quando percebeu que estavam no centro de um extenso jardim, completamente aberto.
A princípio, a prisioneira acreditou que estava sendo vítima de uma piada de mau gosto. Esperou que seus captores começassem a rir a qualquer momento e a arrastassem de volta para o helicóptero que a levara até ali, dando um fim à brincadeira, mas os três homens mantiveram as expressões fechadas. Um deles até mesmo desatou as suas mãos, empurrando-a na direção da casa, que parecia completamente deserta. Ainda desconfiada, Ingrid deu alguns passos vacilantes em frente.
À primeira vista, o novo abrigo de exilados podia facilmente se fazer passar por um lugar acolhedor e pacífico. A construção de dois andares ocupava o centro de um belo gramado - que, ao contrário do que se poderia esperar, não terminava em muros ou grades reforçadas com cercas elétricas - e se parecia com uma casa de fazenda espaçosa, com o pé-direito alto. As paredes de madeira eram pintadas de um tom calmante de azul pastel, cobertas de muitas janelas com esquadrias brancas e sem grades, reforçando a ilusão de que qualquer um poderia entrar e sair na hora que lhe conviesse. Como se fossem hóspedes, não prisioneiros. Ingrid não gostou nada disso. Tornando o cenário ainda mais desconcertante para a garota, a fachada da casa era decorada por pequenas varandas, mobiliadas com cadeiras de vime que estavam viradas para um imenso campo de girassóis. As plantas, que podiam atingir a altura média de um homem adulto, cercavam a casa por todos os lados e se amontoavam até onde a vista era capaz de alcançar, como reflexos infinitamente replicados em uma sala de espelhos.
Aquela não podia ser a instituição de segurança máxima da qual os patriotas se orgulhavam tanto. Onde estavam os vigias armados com fuzis, os cachorros ferozes soltos pela propriedade e as câmeras de segurança? Quem ou o que impedia os exilados de escapar dali? Até onde Ingrid podia ver, o lugar não passava de uma pousada campestre ridícula. Era de se esperar que os responsáveis pela guarda da prisioneira já tivessem aprendido que ela era esperta demais para ser digna de confiança, mas, aparentemente, eles ainda não haviam se dado ao trabalho de folhear o seu histórico.
Ao longo dos cinco anos em que vivera como exilada, Ingrid já havia sido transferida de instituição três vezes por suas muitas tentativas de fuga quase bem sucedidas. Ela se orgulhava de ter conquistado a fama de traiçoeira entre os carcereiros, que sempre tentavam castigá-la por seu péssimo comportamento privando-a de comida, água, exercícios e companhia. Tudo em vão. Nenhuma punição parecia ser capaz de desencorajá-la e os diretores das instituições acabavam tendo que admitir sua incompetência em contê-la e encaminhar a prisioneira problemática para um novo abrigo ao final de alguns meses. Normalmente, um lugar ainda mais sombrio do que o anterior.
Por isso, assim que anunciaram sua mais recente transferência, Ingrid criara expectativas altas para o seu novo lar temporário. Ela estava esperando por celas em torres, tratamento de choque, medicações incapacitantes, camisas de força e outras formas cruéis de manter os exilados confinados. Mais do que esperando, estava contando com isso. Desde que os patriotas a expulsaram de seu país natal depois da morte da sua mãe, o desafio era a única coisa que fazia o seu coração bater mais forte. Mas não haviam desafios para manter seu sangue quente no novo abrigo. Aquela instituição ridícula destroçava todas as suas esperanças de frustrar os seus captores com mais uma tentativa de fuga heroica.
Com os braços e pernas livres de correntes e os olhos descobertos, a prisioneira foi conduzida até um dormitório comum no primeiro andar da casa de fazenda. Ela registrou rapidamente que a porta do quarto não tinha fechadura ou alarme e os corredores não eram barrados por vigias musculosos ou portões pesados. Assim que garantiram que a garota estava acomodada, os guardas se viraram para ir embora sem oferecer nenhuma explicação ou ameaça-la com punições terríveis caso tentasse se arriscar a fugir. Totalmente livre de qualquer supervisão pela primeira vez em anos, Ingrid ficou algum tempo sentada na lateral da cama sem saber o que pensar de toda a situação, escutando o barulho dos passos dos seus captores sumindo ao longo do corredor. O quarto tinha uma porta de correr de vidro que dava para a varanda e ela acompanhou os patriotas com os olhos quando eles cruzaram o gramado até o helicóptero, que levantou voo em menos de um minuto, deixando-a para trás. Sozinha. Solta.
Ingrid logo descobriu que tinha liberdade para sair de seu dormitório, circular pela casa e até mesmo andar pelo jardim sem supervisão. Nas áreas comuns do térreo, além dos prisioneiros identificados pelas roupas pretas numeradas e abotoadas até o pescoço, só circulavam mulheres mais velhas, vestidas com roupas brancas por baixo de aventais amarelos, completamente desarmadas até onde ela podia ver. As funcionárias usavam etiquetas de papel com nomes falsos coladas nas roupas para a sua identificação e eram encarregadas de preparar e servir as refeições, além de manter a casa limpa. Nenhuma delas parecia dedicar a mínima atenção aos exilados, permitindo que eles fizessem o que bem entendessem dentro ou fora da propriedade, e não havia guardas ou câmeras à vista para compensar a falta de monitoramento. Nem mesmo as porções de comida eram batizadas com substâncias entorpecentes para drenar as energias e embaçar o raciocínio dos prisioneiros. Ao que tudo indicava, ninguém tentaria se colocar no caminho de Ingrid se ela decidisse simplesmente atravessar o campo de girassóis e correr para a liberdade.
Mas algo na passividade dos outros prisioneiros e em seu aspecto permanentemente abatido atiçou a sua desconfiança e a fez hesitar por alguns dias. Ingrid já convivera com muitos exilados nas outras instituições e sabia muito bem que eles não eram seres dóceis e conformados por natureza. Como poderiam? Haviam sido expulsos de seu país natal simplesmente por serem órfãos de imigrantes. Com o argumento de que o Estado não podia se dar ao luxo de sustentar os filhos de estrangeiros desamparados, os patriotas anulavam os direitos legítimos à cidadania dessas crianças e as enviavam para “abrigos” fora do país contra a sua vontade, para serem tratados como criminosas.
Aos nove anos de idade, Ingrid se tornou uma das vítimas desse programa de governo quando sua mãe, Mirna, morreu em um acidente de trabalho. Desde então, ela experimentou na própria pele o sofrimento de ser privada de tudo que mais amava. Aprendeu a duras penas que a única coisa que podia substituir o vazio que se instalava depois de um trauma tão grande era a sede de vingança. Como protesto, Ingrid nunca abaixou a cabeça para as imposições dos patriotas e tinha certeza de que, se aqueles prisioneiros, mesmo cercados de dezenas de possibilidades de fuga, não tentavam correr para longe ou organizar um motim, isso só podia significar que havia alguma armadilha escondida naquele abrigo. E ela estava determinada a descobrir qual era.
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Ao longo das próximas semanas, Ingrid se esforçou para imitar o comportamento exemplar dos outros prisioneiros enquanto observava tudo o que faziam. Percebeu que os exilados raramente saíam do interior da casa para dar uma volta pelo gramado e pareciam evitar as janelas. Eles nunca se sentavam nas varandas de seus dormitórios e preferiam fazer as refeições sozinhos. Ingrid também descobriu logo que seus novos colegas quase nunca conversavam entre si e respondiam com frases curtas qualquer tentativa de interação por parte dela. As funcionárias com os aventais amarelos eram igualmente reservadas e silenciosas.
No novo abrigo, tudo parecia estático, congelado no tempo. Os dias se arrastavam sem nenhum tipo de rotina ou obrigação a cumprir. Nas outras instituições, Ingrid normalmente tinha que seguir horários rígidos para acordar, fazer as refeições, tomar sol e ir dormir. Na casa de fazenda, essas regras não eram respeitadas. Sempre havia comida na geladeira e ela podia sair para esticar as pernas a qualquer hora. Para ocupar o tempo ocioso, Ingrid explorou todo o interior da casa, descobrindo uma pequena biblioteca e uma sala de música com um piano desafinado e um violino com duas cordas estouradas. Os prisioneiros quase nunca frequentavam esses ambientes, preferindo o isolamento de seus quartos.
Tentando se manter ativa, Ingrid também percorreu toda a extensão do gramado, atravessando o jardim com passos cautelosos na sua primeira exploração, certa de que seria castigada com um choque quando finalmente reuniu coragem para se aproximar do campo de girassóis, que marcava o limite do terreno. Mas as plantas continuaram indiferentes ao seu avanço e nenhum alarme soou no interior da casa. O único som que Ingrid podia ouvir era o barulho do vento agitando as folhas pesadas. Ainda assim, ela recuou. A prisioneira tinha quase certeza de que havia alguma coisa terrível escondida no interior daquele campo de girassóis. Por que outro motivo os exilados se esforçariam tanto para manter as plantas fora de vista?
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Dias longos se passaram sem alterações. Cansada da monotonia e de tentar encontrar uma resposta para aquele mistério sozinha, Ingrid decidiu que era hora de deixar o disfarce de boa garota de lado. Precisava confrontar os outros exilados. Se aproximou de cada um deles em horários diferentes do dia, quando não havia mais ninguém por perto, e fez a todos a mesma pergunta: o que tem dentro do campo de girassóis? Alguns balançaram as cabeças e se recusaram a falar, outros a ameaçaram com punhos fechados caso ela repetisse a pergunta e os mais reclusos simplesmente correram de volta para os seus quartos e passaram a evitá-la. O único que se deu ao trabalho de lhe dirigir um olhar cansado e oferecer uma resposta foi um adolescente com a cabeça raspada que costumava vagar pelo corredor do primeiro andar durante a noite, o número 3.
_ Acredite, garota, - ele disse, encarando-a com olhos murchos. - todos nós já pensamos que éramos espertos o bastante para escapar daqui. Escute o meu conselho: não tente.
A última frase foi pronunciada com tanta intensidade que Ingrid precisou se apoiar na parede para se recuperar da sensação repentina de fraqueza que sentiu quando o garoto se retirou. Alguma coisa nos olhos do exilado a perturbou mais do que ela queria admitir e seu aviso foi assustador o bastante para paralisá-la por alguns dias. Mas o tempo voltou a se arrastar na casa silenciosa e o medo começou a ser substituído por indignação. Ela já ouvira outras vezes que era inútil tentar fugir, mas chegara perto da liberdade mesmo assim. Para quem já se atirara de um precipício rochoso contra ondas violentas, o que era um campo de girassóis? Nada que ela encontrasse lá dentro seria mais assustador do que perder a mãe, a casa, a identidade e a liberdade. Ingrid já esperara o suficiente. Era hora de agir.
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