Sala 723
- Alice Castro
- 23 de fev. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de set. de 2023

Oi, pessoal! Como prometido, segue o exercício de narrativa em segunda pessoa que eu lancei na terça-feira. Se você quiser conferir o desafio e tentar também, dá uma olhada aqui. Simbora:
Cedo demais, o despertador toca. Você abre os olhos colados pelo cansaço, encara o teto do quarto e respira fundo. Queria dormir mais dois minutos, quem sabe duas horas, até dois meses. Estende o braço dormente e desativa o alarme, desejando que pudesse calar suas obrigações com a mesma facilidade. Você sabe que precisa levantar agora, entrar debaixo do chuveiro e se aprontar para mais um expediente ou não vai chegar a tempo, mas ainda não se sente pronto para repetir todo o dia de ontem novamente. Esparramado na cama, volta a se perguntar se não deveria ter feito aquela outra faculdade, ou quem sabe investido mais naquele sonho. Tenta se convencer de que talvez ainda tenha tempo, de que nunca é tarde demais, mas os números no mostrador do relógio e na sua conta bancária contam outra história. Com um gemido, você empurra o lençol e vai até o banheiro. Sair do chuveiro quente e acolhedor é outra batalha, mas você a vence, apesar de não se sentir um vencedor. Penteia os cabelos, se veste de maneira apropriada, calça os sapatos. Come um misto com suco preparado às pressas no balcão da cozinha, ainda abarrotado da louça suja do jantar. Não sente gosto de nada. Escova os dentes, pega os fones de ouvido na mesa perto da porta e sai do apartamento. Coloca as mãos nos bolsos para se aquecer quando um vento gelado te recebe do lado de fora. São dez minutos de caminhada até a parada de ônibus, mais dez minutos de espera em um dia bom. Nos dias ruins, esse tempo pode se esticar até meia hora. Hoje, o ônibus chega com apenas dois minutos de atraso. Você torce por um lugar perto da janela, mas o último acaba de ser ocupado pelo passageiro que entrou na sua frente. Você se resigna a se segurar em uma das barras amarelas para se manter de pé ao longo dos 20 minutos de sacolejos pelas estradas esburacadas. Devaneia e quase deixa passar sua parada, mas a mulher simpática que divide o ônibus com você todos os dias te cutuca quando as portas se abrem na rua do prédio comercial onde você trabalha. É quadrado, cinzento e comprido, com janelas estreitas, todas fechadas. Sobe as escadas como um condenado que recebeu sua sentença, passa pela portaria, cumprimenta o porteiro com um aceno de cabeça. Você tem certeza de que o homem está tão cansado do seu rosto quanto você do dele. Entra com outras cinco pessoas no elevador espaçoso, cada uma concentrada nas telas dos celulares. Você já sabe de cor para onde estão indo. Primeiro, desce a mulher com o rabo de cavalo no segundo andar, depois, os dois rapazes no quarto, então o senhor barrigudo no quinto. Você desce no sétimo, se despedindo com um bom dia discreto da moça com saltos altos, que vai subir até o nono. O corredor do sétimo andar está vazio, mas as salas com portas envidraçadas já estão movimentadas. Você caminha o mais devagar que consegue até a quarta porta à direita, sala 723. Encara os números na porta, pensa em dar as costas para eles e nunca mais ter que reparar na pequena falha que arrancou um pedaço da tinta no centro do 2. Sonha com aquela porta às vezes. Nos sonhos, pode correr para longe. Agora, precisa entrar. Torce a maçaneta. Termina mais um dia.
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