Um conto de (quase) uma página
- Alice Castro
- 3 de mar. de 2023
- 4 min de leitura

Você provavelmente já deve ter percebido que eu tenho uma certa dificuldade para escrever pouco. Talvez “certa dificuldade” seja generosidade minha. Correção: tenho uma dificuldade enorme. Como consequência disso, os contos do blog, que deveriam ter no máximo três ou quatro páginas, quase sempre acabam se estendendo por sete ou dez. Eu juro que me esforço para ser breve, mas o problema é que, assim que começo a digitar, as ideias vão surgindo, os personagens vão tomando forma e, depois de alguns parágrafos, eles decidem que não querem mais seguir o plano original. Então eu perco as rédeas da situação e acabo criando alguns monstrinhos indomáveis, bem maiores do que o previsto. E eles mostram os dentes quando eu tento cortar algumas palavras. É um caso perdido.
Mas essa semana eu decidi arregaçar as mangas e trabalhar minha capacidade de ser sucinta. Então me desafiei a escrever um conto de uma página. E (quase) consegui. Foi um exercício doloroso, mas acho que o resultado ficou interessante. Vou deixar você julgar. Até a próxima!
Encurralada
Ao som dos pingos insistentes que escapavam de uma torneira mal fechada, Silvana teve muito tempo para contemplar todos os erros que cometera para se encontrar agora aprisionada naquela situação trágica, da qual sentia que jamais conseguiria escapar sem perder um pedaço considerável da sua dignidade. Com a cabeça baixa, observava com rancor os próprios sapatos, saltos altos elegantes, mas traiçoeiros, que amassavam seus dedos e dificultavam seu raciocínio depois de poucas horas de pé. Jurou despedaçá-los assim que conseguisse escapar dali. Os malditos bem poderiam ser apontados como um dos principais responsáveis por sua desgraça e por todas as decisões pouco sensatas que tomara ao longo do dia.
Silvana não conseguia parar de pensar que nada disso teria acontecido se ela não estivesse com tanta pressa, tão cansada, e se tivesse resistido à tentação de comer um pastel duvidoso, bem recheado com catupiry, em uma barraquinha de rua logo depois de sair do trabalho. Se arrependimento matasse… Mas agora era tarde para chorar o leite derramado. A pior ironia era que nem sequer podia tentar limpar a bagunça que fizera, porque na cabine do banheiro não restara um mísero quadradinho de papel higiênico.
Ela nunca imaginou que cairia nessa armadilha. Depois de trinta e oito anos sobrevivendo a banheiros públicos precários, metade deles dividindo o vaso sanitário com um marido que era incapaz de se lembrar de abaixar a tampa, que dirá reabastecer o rolo de papel, Silvana já estava treinada para conferir o estoque de papel antes de se sentar no vaso. Para ela, era um gesto quase mecânico, infalível. Mas o pastel estragado fora a sua ruína. Assim que o catupiry começou a fazer efeito, ela só teve forças para correr até o banheiro da rodoviária, bater a porta da cabine e abaixar as calças, agradecendo aos céus por ao menos ter sido capaz de conservar sua roupa de baixo e seu orgulho intactos. Que alívio. Estava pronta para começar a rir da própria situação, crente de que o pior já passara, quando estendeu a mão para pegar o papel e seus dedos esbarraram no gancho de metal gelado. Sem papel. Sem rolo.
Seu estômago congelou. Pela primeira vez na vida, Silvana experimentou o desespero de sentir a ausência daquela presença, tão familiar e reconfortante, quando menos esperava e quando mais necessitava. O choque inicial foi rapidamente substituído por um escuro e aterrorizante “e agora?”. Sentiu que um buraco se abria aos seus pés. Lutando para se agarrar a uma última esperança, revirou a bolsa tentando encontrar um lenço ou guardanapo amassado. Um absorvente, que fosse. Nada. De repente, o banheiro deserto, que há pouco tinha representado para ela uma bênção, se transformava em uma maldição. Não havia nenhuma alma caridosa para resgatá-la, passando um pedaço de papel de outra cabine por cima da porta. Precisava encarar os fatos: estava presa ali com a própria merda. Desconsolada, fez a única coisa que estava ao seu alcance: deu a descarga.
E agora, entre um arrependimento e outro, esperava por um milagre. Sentia-se totalmente vulnerável, abandonada ali naquele vaso imundo de um banheiro público. Tentou se consolar pensando que não poderia demorar muito até que algum tipo de socorro surgisse, mas já eram oito e meia da noite. Com o passar do tempo, a rodoviária só ficaria mais vazia, e ela, ainda mais enrascada. Estava começando a cogitar a ideia de abrir a porta e desbravar o banheiro, com as calças nos joelhos, até encontrar o rolo de papel mais próximo. Mas e se alguém decidisse aparecer justo naquele instante? Seu rosto queimava só de pensar na humilhação daquele encontro. Nunca conseguiria se recuperar do trauma. O tempo se arrastava. Cinco minutos depois, a ideia voltava e já não parecia tão terrível. Talvez, se ela fosse muito rápida…
O som da porta do banheiro batendo contra a parede interrompeu seus pensamentos delirantes, anunciando a chegada da sua salvadora. Silvana quase chorou de alívio. Estava prestes a anunciar a sua presença e pedir a ajuda da abençoada moça que lançaria a corda para tirá-la daquele fosso, quando percebeu que tinha cometido outro erro fatal. Pela fresta da parte de baixo da sua cabine, viu passar duas botinas enormes, tamanho 42. Descobriu que estava no banheiro masculino.
Comentarios