Chá da Tarde
- Alice Castro
- 17 de fev. de 2023
- 11 min de leitura

A campainha tocou, quinze minutos depois do horário marcado. Fátima sabia muito bem, porque passara a última meia hora tricotando na poltrona que ficava exatamente de frente para o seu fiel relógio de pêndulo, que nunca se enganava. Típico de Sônia, fazer com que os outros esperassem por ela, pensou. Talvez até tivesse se atrasado de propósito, para poder reclamar que o chá estava frio quando as duas finalmente se sentassem à mesa. Velhota traiçoeira.
Sem um pingo de pressa, Fátima guardou as agulhas, se levantou, alisou o vestido e reorganizou as flores espetadas em um vaso elegante no centro da mesa, colocando as mais bonitas por cima. Antes de receber a convidada, ainda se deu ao luxo de fazer uma pausa para conferir seu penteado no espelho oval da sala. Ajeitando o coque, imaginou Sônia do outro lado da porta, impaciente, confiando a maior parte do seu peso à bengala em uma tentativa desesperada de reduzir a terrível dor nos joelhos que a perseguia há anos. Mesmo sabendo que não deveria, Fátima deixou escapar uma risadinha. Aquela seria sua pequena vingança pelo atraso deliberado da outra. E se Sônia reclamasse da sua demora para abrir a porta, ela sempre podia fingir que não tinha escutado a campainha da primeira vez. “Você sabe, minha audição já não é mais a mesma…”. Ser velha tinha lá suas vantagens.
Depois de mais dois toques estridentes da campainha, o último mais longo do que os anteriores, revelando certa urgência, Fátima decidiu que já castigara sua visitante por tempo suficiente e se dispôs a abrir a porta. Girou as duas chaves e soltou a correntinha, abrindo passagem para o inimigo. Lá estava Sônia, trêmula no corredor, parecendo tão inofensiva quanto o cavalo de Troia.
_ Boa tarde, querida! - a dona da casa cumprimentou, disfarçando uma animação que não sentia, mas que a cordialidade exigia.
Apesar de não gostar da companhia de Sônia, Fátima sabia que precisava recebê-la bem e manter as aparências. Devia isso a seu falecido marido, Lúcio, que era o melhor amigo do marido de Sônia, Adalberto. Por mais de trinta anos, os dois homens haviam trabalhado no mesmo banco, na mesma repartição, na mesma sala, e mesmo assim faziam questão de se encontrar fora do trabalho sempre que surgia uma oportunidade. Fátima detestava esses eventos, porque era obrigada a interagir com Sônia enquanto Lúcio e Adalberto fofocavam sobre os colegas e discutiam política madrugada adentro. Bafejando nuvens tóxicas de fumaça de seus cigarros sobre Fátima, Sônia a importunava com dicas de beleza, comentários irritantes sobre como ela poderia deixar a comida do jantar mais saborosa e conselhos intermináveis para ajudá-la a criar seus filhos. Como se Sônia fosse uma autoridade no assunto. Não conseguia nem fazer as crianças pararem de brigar na mesa. Fátima sempre voltava para casa irritada, cheirando a cigarro e com uma terrível dor de cabeça.
Depois que Lúcio morreu, Fátima rezou para que o casal se afastasse dela gradualmente, mas Sônia insistia em aparecer para visitá-la ao menos uma vez por mês, fingindo estar preocupada com a “pobre viúva solitária”. Mas é claro que Fátima não comprava essa conversinha furada. Estava certa de que a outra só estava procurando um motivo para bisbilhotar. Ou, quem sabe, Adalberto a incentivava a visitar as amigas na esperança de poder tirar uma folga da esposa. Fátima não poderia culpá-lo. A mera visão de Sônia era o bastante para atiçar a sua enxaqueca.
Resmungando um “boa tarde” com sua voz rouca de ex-fumante, Sônia arrastou seus sapatos ortopédicos para dentro e as duas trocaram beijos no rosto, como nos velhos tempos. O perfume de Sônia era muito forte, enjoativo, e ela estava arrumada demais para a ocasião. Queria exibir suas roupas caras e deixar Fátima desconfortável, era óbvio. Como estava vulgar, com seus brincos espalhafatosos que puxavam suas orelhas para baixo, o cabelo tingido de caramelo e aquele cachecol azul, que aliás era de péssimo gosto, porque não combinava com a roupa. Mas Fátima fingiu que não tinha reparado em nada. Se ficasse olhando demais, Sônia com certeza assumiria que ela estava com inveja. E Fátima não queria correr o risco de lhe dar essa satisfação.
_ Como vai Adalberto? - Fátima perguntou, evitando deliberadamente perguntar sobre a saúde de Sônia.
_ Ah, está ótimo. Sempre lendo aquelas revistas de economia para descobrir onde investir. Como se precisasse de mais dinheiro! Ele vive comprando presentes para mim, mas eu sempre digo que a única coisa de que estou realmente precisando são novos joelhos.
Ela soltou uma risada amarga, seguida de uma tosse. Como esperado, Sônia estava agarrada à bengala, e já lançava olhares pela sala à procura de um lugar onde pudesse se sentar. Percebendo seu desconforto, Fátima sentiu-se ligeiramente culpada e puxou uma das cadeiras da mesa para a convidada. Sônia aceitou o convite com a mesma avidez de uma criança que finalmente recebe autorização dos pais para desembrulhar os presentes de Natal. Desabou na cadeira.
_ A sua casa está um amor, Fátima. A mesma de sempre. - comentou, lançando um olhar desinteressado em volta.
O sorriso de Fátima endureceu e ela teve que morder a língua para não responder a provocação. Desde a última visita de Sônia, ela comprara um sofá novo, pendurara uma pintura moderna, trocara as cortinas e o tapete. Tudo porque estava cansada de ouvir da outra como sua casa continuava “a mesma de sempre”, como se Fátima morasse em um museu, ou precisasse reaproveitar móveis antigos por falta de dinheiro. No último encontro, Sônia chegara ao absurdo de sugerir que, se ela precisasse de ajuda para comprar algumas coisinhas, poderia contar com Adalberto. Aquela havia sido a gota d’água para Fátima. Determinada a provar que não precisava da caridade de ninguém, saiu na semana seguinte para renovar sua sala e fechar a boca de Sônia de uma vez por todas. Mas era evidente que hoje sua visitante estava fazendo vista grossa para suas novas aquisições apenas para irritá-la. Sônia nem mesmo fora capaz de elogiar a louça nova que Fátima colocara na mesa, ou os belos lírios amarelos que ela comprara especialmente para a ocasião. Fátima decidiu que da próxima vez ia comprar cactos. Bem espinhosos. Ou talvez uma planta carnívora.
_ Aceita um café com leite? - ofereceu, lutando para manter a expressão serena.
_ Desculpe, Fafá, não posso. - Sônia insistia naquele apelido ridículo, que mais parecia o nome de um cachorro e colocava os cabelos de Fátima em pé. - Sou intolerante à lactose, meu bem. Não se lembra?
Fátima se lembrava, se lembrava muito bem. Mas gostava de fazer Sônia ter que se repetir, para deixar claro que não prestava atenção suficiente na outra para guardar na memória um fato irrelevante como esse. Fingiu surpresa.
_ É mesmo! Me esqueci completamente… a minha memória está cada dia mais traiçoeira. - a velha e boa desculpa das dores da idade avançada. - Me desculpe.
_ Ora, não foi nada. Para mim basta uma xícara de chá. Quente, por favor. - Sônia lançou mais uma de suas alfinetadas, acompanhada de um sorriso amarelado pelos muitos cigarros.
_ Vou esquentar a água.
Fátima ficou de pé e retribuiu o sorriso, imaginando a satisfação que sentiria se pudesse despejar todo o conteúdo borbulhante da chaleira bem em cima da cabeça da sua visitante. Antes que perdesse as estribeiras, deu as costas para Sônia e foi buscar o lanche. Quando voltou trazendo uma bonita bandeja de prata com um bule fumegante e os malditos biscoitos sem lactose que não tinham gosto de nada, percebeu que Sônia tinha rearranjado seus lírios. Mas que atrevimento! De alguma forma inexplicável, aquele pequeno gesto a irritou mais do que todas as outras indelicadezas.
_ Gostou das flores? - Fátima perguntou, servindo a xícara de Sônia até a borda, ignorando os gestos aflitos da outra para que ela parasse na metade.
_ Adalberto adora lírios. - Sônia comentou rapidamente, tentando escapar da armadilha.
_ E você? - Fátima insistiu, sentando-se e mordendo um biscoito para extravasar sua ira.
_ Prefiro margaridas. São mais delicadas.
Está dando a entender que a minha decoração é grosseira, Fátima pensou, mastigando outro biscoito para não precisar responder. Indiferente à perturbação que causara, Sônia mexia o chá com uma colher, bem devagar, tomando cuidado para não derramar o excesso de água em sua xícara. Então tomou um gole tão minúsculo que um estranho poderia pensar que estava com medo de ser envenenada. Era uma pena que essa ideia só estava ocorrendo à Fátima agora.
_ Semana passada comprei um chá inglês maravilhoso. - Sônia comentou, franzindo o nariz e deixando a xícara de lado. - Quando voltar aqui mês que vem posso trazer um pouco para você.
Que surpresa. Então o chá também não estava bom o suficiente para Sônia. E os biscoitos insossos continuavam intocados. Sentindo o rosto esquentar de raiva, Fátima contra atacou:
_ Esse chá era o favorito de Lúcio. Veio diretamente da China.
Duas mentiras deslavadas, dois golpes estrategicamente calculados para quebrar a muralha de arrogância de Sônia. Empalidecendo um pouco, a outra não conseguiu disfarçar seu constrangimento por ter ofendido o chá favorito do falecido marido de Fátima. E ainda por cima um chá Chinês, um dos mais caros e tradicionais do mundo. Que gafe. Corando, Sônia tentou reparar seu erro:
_ Lúcio sempre teve muito bom gosto. É claro que eu adorei o chá, meu bem. - ela voltou a puxar a xícara para mais perto e tomou um gole generoso para reforçar seu ponto. - Me desculpe se passei a impressão errada. Só estava tentando puxar assunto.
Em pleno estado de júbilo por finalmente ter conseguido atingir sua inimiga de alguma forma, Fátima concedeu seu perdão com um aceno de cabeça, mas permaneceu em silêncio por um longo momento apenas para prolongar o constrangimento de Sônia, assumindo uma grave expressão de tristeza por seu pobre Lúcio. Fátima podia ver que a visitante agora batalhava para encontrar um assunto neutro que as afastasse daquele campo minado onde ela, desavisadamente, tinha acabado de fincar os pés. Sônia coçou a parte de trás da orelha, como fazia quando ficava nervosa.
_ E como estão seus filhos? - perguntou, finalmente.
_ Ótimos. - Fátima se empertigou na cadeira, pronta para expor suas crias como belos troféus. - Meu mais novo está no exterior há um ano. Conseguiu um emprego maravilhoso no Canadá.
Sônia não pareceu impressionada.
_ É como o meu Davi. Ele ganhou uma bolsa para fazer um mestrado na Alemanha, imagine só! É outro mundo.
Sem querer ficar para trás, Fátima tirou outra carta da manga.
_ César comprou uma casa incrível na praia. Tem dois andares, não dá pra acreditar na vista!
_ Que ótimo. Olga teve um bebê recentemente - Sônia comentou, limpando os cantos da boca com o guardanapo. - A criança é tão linda que saiu até na capa de uma revista para mães.
Então só pode ter puxado ao pai, Fátima pensou, desgostosa. Olga era a filha mais nova de Sônia, e deixava muito a desejar no quesito beleza. Herdara o queixo pontudo e a testa larga da mãe.
_ E Viviane, como está? - Sônia deu o bote, traiçoeira, jogando sal na ferida.
Ela sabia muito bem que Viviane era a ovelha negra da família de Fátima. Não tinha emprego, não tinha filhos, não tinha nem mesmo um relacionamento estável com um bom homem de quem Fátima pudesse se gabar.
_ Muito bem. - Fátima respondeu de forma genérica, evitando os olhos da outra enquanto recolhia alguns farelos de biscoito que tinham caído na toalha ao redor do seu prato. - Vem me visitar toda semana - era mentira. E de repente, com uma súbita inspiração. - Foi ela que pintou aquele quadro para mim.
Outra mentira, mas que mal poderia fazer? Fátima apontou para uma pequena pintura emoldurada pendurada na parede, que comprara em uma feira de rua como parte da sua tentativa de renovar a casa. O quadro mostrava uma gaivota vista de baixo para cima, suas penas brancas realçadas contra o azul de um céu sem nuvens, e era muito bonito. Mas com certeza Sônia o desprezaria agora que pensava que tinha sido feito por Viviane. Fátima estava pronta para mudar de assunto quando olhou para Sônia e se surpreendeu ao perceber que os olhos da outra estavam marejados.
_ É realmente muito bonito, Fátima. - ela comentou, pigarreando, comovida. - Não sabia que tinha sido feito pela sua filha.
Inacreditavelmente, Sônia limpou os olhos no guardanapo, deixando marcas escuras de rímel no papel. Fátima ficou muda, sem saber como reagir diante daquela inesperada demonstração de vulnerabilidade. Nunca vira Sônia chorando. Normalmente, a outra era tão imperturbável que não se emocionava nem mesmo em velórios de conhecidos e costumava zombar das lágrimas de Fátima nesses eventos, dizendo que ela “chorava por qualquer coisa”.
_ Está se sentindo bem, querida? - Fátima perguntou, tentando entender o que causara aquela estranha reação na velha. O que poderia haver de tão comovente em uma gaivota? Era mais provável que fossem os joelhos. - Precisa de algum remédio para a dor?
Sônia balançou a cabeça e agitou as mãos para descartar a oferta de Fátima, as lágrimas agora escorrendo livremente pelo seu rosto.
_ Eu só… fiquei emocionada… meus filhos… - ela tentou explicar, mas teve que fazer uma pausa para assoar o nariz no meio do processo. - A verdade é que falo muito deles, mas nunca me visitam. Às vezes mandam presentes pelo correio, mas são doces, perfumes… você sabe, coisas que compram por obrigação. Nunca me deram nada tão bonito, tão… pessoal como esse quadro.
Sem mais uma palavra, Sônia se levantou e foi mancando até o banheiro, deixando Fátima sozinha na sala. Depois de tantos anos sendo torturada pela companhia insalubre de Sônia, Fátima nunca poderia imaginar que ver a outra devastada daquela maneira a faria sentir algo além de uma profunda satisfação. Esperara por aquilo, sonhara com aquele momento. Mas, agora que finalmente encontrara uma brecha na casca de indiferença da mulher, seu calcanhar de Aquiles, simplesmente não conseguia saborear o que deveria ser a sua vitória. Segurando um biscoito entre os dedos, paralisada, sentia-se como um animal estaqueado no meio da estrada, temporariamente desnorteado pelos faróis brilhantes de um carro, poucos instantes antes de ser atropelado. Então Fátima sentiu o impacto.
Depois de ter presenciado a tristeza da velha, percebeu que entendia exatamente como ela se sentia. Sozinha. Esquecida. Gasta. Fátima sabia melhor do que ninguém, porque era íntima daqueles sentimentos. Ultimamente, passava mais tempo com eles do que com qualquer outra pessoa. Pela primeira vez, conseguiu se enxergar na outra. Parecia que, ao contemplar o rosto borrado da sua visitante, que acabava de voltar do banheiro, estava observando a si mesma de fora. Era irônico perceber isso, talvez até um pouco cruel, mas Fátima e Sônia não eram tão diferentes quanto uma vida de discórdias e implicâncias as levara a acreditar.
Os filhos de ambas estavam muito ocupados com as carreiras, com suas novas famílias e com os próprios problemas para se lembrarem das mães. Lúcio estava morto e Adalberto, apesar de ainda ocupar o seu espaço na mesa de jantar, era quase uma presença fantasmagórica na casa de Sônia, sempre pensando em dinheiro e tentando preencher suas ausências com presentes. Os amigos das velhas, aqueles que ainda não tinham ido para os cemitérios, estavam sendo conduzidos para asilos ou hospitais em andadores, macas e cadeiras de rodas. Até mesmo o quadro que Fátima “ganhara de presente da filha” não passava de uma mentira. Fazia meses que não recebia sequer uma ligação. O que sobrava então? Com um pequeno aperto no peito, Fátima pensou: as visitas de Sônia.
Teve vontade de chorar, mas, para a sua surpresa, a emoção lhe escapou em um riso. Sônia levantou os olhos vermelhos, espantada com aquela reação fora de lugar. Indiferente à surpresa da outra, Fátima chorava de rir, batendo uma mão na mesa, se dobrando para recuperar o oxigênio.
_ Está maluca, mulher? - Sônia perguntou, os olhos arregalados.
Sônia parecia um palhaço falido, com todo aquele rímel escorrido e o batom borrado. Tudo ficava pior com sua expressão assustada. Fátima riu ainda mais de toda a situação, sentiu a barriga doendo. Que sensação boa. Fazia tempo que não ria de verdade.
_ Quer ouvir uma piada? - Fátima perguntou de repente, fazendo a outra recuar um pouco na cadeira diante do seu ar de lunática. - Aquela pintura. Eu comprei na feira. Minha filha nunca me escreveu nem mesmo uma carta.
Então Fátima se colocou de pé, apontando para o bule de chá.
_ Esse chá não é chinês. E Lúcio nunca tomava chá.
Fátima continuou a rir, balançando a cabeça. Sônia começava a relaxar a sua expressão assustada, processando todas aquelas informações. De repente, ela também soltou uma risada, percebendo como tudo aquilo era patético.
_ Acho que estamos quites. Também preciso confessar uma coisa - fez uma pausa dramática. - Eu nunca fui intolerante à lactose.
As duas se encararam a sério por alguns segundos, tentando entender para onde todas aquelas confissões as levariam, então simplesmente continuaram a rir. Pela primeira vez, a risada alta de Sônia não incomodou Fátima. E passaram uma tarde deliciosa tomando sorvete de chocolate. Com lactose.
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