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Sobre conflitos e vilões

  • Foto do escritor: Alice Castro
    Alice Castro
  • 27 de abr. de 2022
  • 6 min de leitura

Atualizado: 22 de dez. de 2023


Photo by John Noonan on Unsplash

Toda boa história, para se manter em movimento e oferecer um propósito ao protagonista, precisa de um conflito, uma questão que deve ser resolvida. Vamos tomar a nossa vida como exemplo. Os problemas que enfrentamos diariamente nos forçam a tomar decisões, escolher um caminho ou outro e depois sofrer as consequências dessa escolha. A forma como reagimos diante das adversidades revela o nosso caráter melhor do que qualquer outra coisa.

Por isso, por mais que seja sofrido para nós acompanhar nossos personagens favoritos passando por dificuldades, temos que admitir que eles seriam muito menos interessantes se não fossem perturbados por certas desilusões e decepções de vez em quando. Se Frodo nunca tivesse saído do Condado, ele seria apenas mais um hobbit comilão e dificilmente alguém se interessaria em ler a sua história. Os perrengues e privações que ele enfrentou ao longo da sua jornada foram essenciais para o seu crescimento, revelando sua coragem e força. Nada disso seria possível sem o conflito inicial, a proposta de Gandalf de que ele deixasse a própria segurança e conforto para trás e assumisse a posição arriscada de protetor do anel.

Conflitos podem aparecer nas histórias nas mais diversas formas. Eles podem ser internos (problemas de consciência, um segredo guardado, dilemas existenciais, a batalha contra um vício) ou externos, envolvendo uma situação ou condição que afeta diretamente o personagem, mas não depende exclusivamente dele para ser resolvida (desemprego, problemas no casamento, uma guerra, a doença de um familiar). Também é comum que esses dois tipos de conflito apareçam juntos, como acontece no caso de Frodo, que era perturbado tanto pelo conflito interno de ser seduzido pelo poder do anel, quanto pelo conflito externo de ser constantemente atacado pelos exércitos e aliados de Sauron, que tentavam impedi-lo de cumprir sua missão.

Assim como acontece em Senhor dos Anéis, conflitos externos com frequência são personificados na figura de um vilão que se opõe ao objetivo principal do protagonista. O mago Saruman, por exemplo, é um dos vilões de Tolkien. Sauron é outro, e o próprio anel pode ser considerado vilão em alguns momentos da história, se levarmos em conta sua capacidade de corromper o caráter de outros personagens, como aconteceu com Gollum.

Na maior parte dos casos, vilões representam o que há de pior no universo do personagem. A cobiça, a corrupção, o egoísmo, a crueldade, a falta de amor e empatia. Eles são o mal que o bem, representado pelo protagonista, deve combater e, muitas vezes, eliminar. Frodo é escolhido para carregar o anel porque ele é um dos poucos capazes de resistir à tentação de usá-lo em benefício próprio. Isso é uma virtude do personagem, mostra que ele é altruísta e não tem ambições de ser mais poderoso e dominar seus semelhantes, ao contrário de Saruman, que não mediria esforços para obter o anel.

Nessas histórias de fantasia, estamos acostumados a encontrar vilões totalmente cruéis, que não apresentam um pingo de humanidade, como Sauron, Voldemort ou o rei Joffrey de Game of Thrones. Esses personagens foram criados para serem odiados, o que é muito conveniente para os escritores. A raiva que sentimos pelos vilões faz com que tenhamos ainda mais apreço pelos protagonistas e torna mais fácil para nós justificar as ações não tão nobres dos heróis. Quando Joffrey morre envenenado, ninguém espera que o responsável seja punido pelo crime, muito pelo contrário, queremos que ele seja recompensado por ter livrado o mundo daquela criatura desprezível.

Seria muito mais difícil para nós “passar o pano” para o personagem que assassinou o rei se Joffrey fosse um garoto com algumas virtudes, apesar das muitas falhas. Nesse caso, poderíamos nos perguntar se algo tão extremo como envenenamento era realmente necessário, se Joffrey não poderia receber uma segunda chance para aprender a ser uma pessoa melhor. Começaríamos a duvidar do bom senso do protagonista ao ter tomado uma decisão tão definitiva e violenta como matar Joffrey e questionaríamos se o herói é mesmo tão virtuoso quanto a narrativa quer nos fazer acreditar. E são poucos os autores que querem assumir o risco de fazer o protagonista perder alguns pontos na nossa estima. É mais fácil garantir que vamos torcer pelo “lado certo” apresentando o vilão como uma criatura terrível. Assim, o leitor percebe que o personagem está corrompido até a alma e automaticamente entende que seria inútil tentar oferecer a ele uma oportunidade de revelar seu “lado bom”. Afinal, não existe um lado bom para ser revelado em um buraco negro.

Mas, no fundo, sabemos que essa representação não é muito realista. Na vida real, muitas vezes a linha que separa heróis de vilões não está tão bem desenhada e existem muitas categorias entre uma coisa e outra. Os “vilões” que encontramos no nosso dia a dia não necessariamente representam a luta entre bem e mal, mas simplesmente a oposição entre uma visão de mundo e outra, ou o antagonismo natural que surge entre duas ou mais pessoas que compartilham de um mesmo desejo, mas sabem que apenas uma delas poderá realizá-lo. É o caso de colegas de trabalho competindo pela mesma promoção, por exemplo. Todos eles têm um bom motivo para desejarem um aumento e podem ser igualmente merecedores, mas apenas um conseguirá a vaga. Nesse caso, não existe a situação clássica do bem contra o mal, apenas perspectivas diferentes entrando em choque. Cenários como esse são pouco explorados em narrativas tradicionais, mas podem apresentar conflitos muito interessantes e originais.

No livro A Menina de Vidro, de Jodi Picoult, encontramos um bom exemplo de uma história que não conta com o embate tradicional entre bem e mal, certo e errado. Considerando a complexidade moral do conflito apresentado pela autora, é difícil julgar quem são os heróis ou vilões e condenar as ações de qualquer um dos personagens. Segue uma breve sinopse do livro - sem spoilers - para quem tiver interesse de ler em algum momento (recomendo):

Charlotte, a protagonista, é mãe de Willow, uma menina que nasceu com osteogênese imperfeita, doença rara nos ossos que a torna mais suscetível a fraturas. Apesar do cuidado e atenção constante que os pais dedicam à filha, a criança passa grande parte da infância em hospitais, imobilizada por gessos e pinos e sentindo as dores provocadas pelas muitas fraturas que podem ser causadas até mesmo por um mínimo tropeço.

Os tratamentos disponíveis e as muitas internações a que Willow tem que se submeter são caríssimos e Charlotte e o marido estão muito perto de falir tentando sustentar os cuidados indispensáveis à condição de saúde da filha. Percebendo a situação trágica da família, dois advogados se apresentam ao casal com uma proposta que pode salvá-los das dívidas e proporcionar um futuro melhor para Willow. Eles sugerem que Charlotte processe a obstetra que acompanhou a gravidez, doutora Piper (melhor amiga de Charlotte), por nascimento indevido, o que implicaria em acusar a médica de não notificar a mãe sobre a doença do bebê, que poderia ter sido detectada ainda no útero, a tempo de realizar um aborto. Vencer o processo pode render um pagamento bem generoso que seria a solução para grande parte dos problemas da família.

A proposta pressiona Charlotte a enfrentar um grande dilema interno e externo. Ao mesmo tempo que ela precisa muito do dinheiro e quer ter condições de oferecer a melhor vida possível para a sua filha, levar o processo adiante seria o mesmo que trair Piper, uma grande amiga. Para agravar a situação, se quiser ter esperanças de convencer os juízes e ganhar a causa, Charlotte seria obrigada a mentir na corte, afirmando publicamente, sob juramento, que preferia que Willow nunca tivesse nascido.

Não existem vilões em uma situação como essa, apenas vítimas. E isso enriquece o conflito. Somos capazes de empatizar com todos os personagens, que têm virtudes e falhas em igual medida, e a história provoca reflexões muito interessantes sobre o que consideramos certo e errado e como essas definições são muito menos fixas do que pensamos, variando de acordo com o contexto.

A ausência de uma disputa clara entre bem e mal e de um vilão funciona muito bem no caso do livro A Menina de Vidro, mas também é possível criar uma narrativa mais realista se fugirmos do modelo clássico de vilão desalmado. Alguns autores apresentam antagonistas muito interessantes que nos lembram que vilões têm falhas e cometem erros, mas ainda são seres humanos capazes de amar, pessoas que não enxergam as próprias ações como cruéis, porque têm outra visão do mundo.

Se o vilão for profundo o suficiente, é possível que o leitor empatize com ele e seja capaz de entender o que está por trás de suas atitudes maldosas, apesar de não concordar completamente com elas. E isso também pode gerar conflitos mais interessantes para o herói, porque as decisões do protagonista se tornam mais difíceis moralmente a partir do momento em que ele não está enfrentando um demônio sanguinário, mas uma pessoa com cicatrizes. Nas palavras de Orscon Scott Card, autor de Ender’s Game:

No momento em que eu realmente entendo o meu inimigo, entendo-o bem o suficiente para derrotá-lo, então, nesse exato momento, eu também o amo.

Com certeza é um desafio e um risco para o escritor apresentar vilões mais humanos com os quais os leitores possam empatizar, mas alguns autores já provaram que é possível fazê-lo sem diminuir a força do protagonista e que grandes histórias podem nascer quando abrimos a nossa cabeça para novas possibilidades.


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