Culturas em choque: O Xará, de Jhumpa Lahiri
- Alice Castro
- 19 de out. de 2024
- 5 min de leitura

Abençoadas sejam as pessoas caridosas que viajam e deixam os seus livros comigo. Graças a elas, eu tenho a oportunidade de conhecer novos autores e histórias que dificilmente leria se não fosse por estar ocupando essa função (que eu amo) de babá da biblioteca alheia. Cuidando dos livros de um amigo, Jefther, que teve a bondade de me emprestar sua linda coleção de capa dura da Tag, eu já tive a oportunidade de trazer duas resenhas para o blog, Jude, o Obscuro (Thomas Hardy) e O Olho Mais Azul (Toni Morrison). Hoje, em uma resenha sem spoilers, vou compartilhar com vocês minha experiência com outro livro da coleção: O Xará, da autora Jhumpa Lahiri. Esse romance sensível expandiu meus horizontes e os personagens me conquistaram desde as primeiras páginas. Se você ainda não conhece o trabalho da escritora, como eu também não conhecia até pouco tempo atrás, essa é uma boa oportunidade de descobrir se o estilo dela combina com o seu e de se aproximar de uma literatura bem diferente da que normalmente consumimos.
Filha de indianos, Jhumpa Lahiri nasceu na Inglaterra e foi criada nos Estados Unidos, crescendo e construindo a sua identidade em meio a todas essas culturas. O seu nome oficial, nos registros e documentos, é Nilanjana Sudeshna Lahiri, mas a autora assina os seus livros com o apelido Jhumpa, usado pela sua família e amigos íntimos. Esse apelido “carinhoso” é conhecido como daknam pelos bengalis (indianos da região de Bengala), e se opõe ao que eles chamam de “nome bom”, ou bhalonam, nome usado em contextos formais, como Lahiri explica em O Xará.
A questão dos nomes surge logo no início do romance, quando Ashima e Ashoke, casal de imigrantes indianos vivendo nos Estados Unidos, têm o seu primeiro filho em terras, para eles, estrangeiras. Antes de receberem alta do hospital em que a criança nasceu, os pais são pressionados a escolherem um nome para registrar o bebê. Aquela urgência por um nome oficial impressiona o casal, pois na Índia é comum que crianças passem meses, ou até anos, sendo conhecidas apenas pelo seu apelido antes de receberem o nome oficial, que normalmente tem um significado especial e deve ser considerado com muito cuidado.
Ashima, a mãe, queria que sua avó escolhesse o nome bom do bebê, mas o hospital não está disposto a esperar pela chegada de uma carta da Índia para fazer o registro. Em vão, Ashoke tenta explicar o costume de seu povo para os funcionários, mas só consegue deixá-los mais confusos. A prática de adotar dois nomes para situações diferentes faz parte da realidade e da cultura dos bengalis, mas não é muito bem recebida nos países do Ocidente, onde cada pessoa tem um único nome oficial, que deve ser usado em todos os contextos. Ignorando a tradição bengalesa, a equipe do hospital insiste, regras são regras: o casal precisa registrar a criança antes de voltar para casa. Sem alternativas, Ashoke decide reaproveitar o daknam (apelido) que tinha escolhido para o filho, inspirado no seu escritor favorito, como nome bom. O bebê é nomeado então como Gógol Ganguli. E a confusão de seu registro é apenas o primeiro de muitos choques culturais que o acompanharão ao longo de sua vida.
Além de ter um nome russo considerado esquisito pelos norte-americanos, os traços indianos de Gógol e seu sobrenome fazem muitos assumirem que ele é estrangeiro, mesmo que tenha nascido nos Estados Unidos. O menino também tem dificuldades para equilibrar os costumes que aprende em casa com os costumes ensinados na escola e compartilhados pelos seus amigos. Quando está com os pais e nas festas de família, fala em bengali e come pratos apimentados com as mãos. Na escola, conversa com os colegas em inglês e usa talheres para comer a comida local do refeitório. Durante as férias escolares, enquanto os amigos de Gógol vão conhecer lugares como o Grand Canyon, ele acompanha a sua família na longa viagem até Calcutá, cidade natal de seus pais. O lugar é totalmente desconhecido para a grande maioria dos norte-americanos, que costumam perceber a Índia como um país exótico, subdesenvolvido e pouco civilizado.
Nessas viagens, pouco esperadas pelo filho, os Ganguli insistem em ficar hospedados nas casas de muitos parentes que Gógol mal conhece e dormem em quartos compartilhados, o que incomoda o garoto, acostumado a ter a sua privacidade e o seu espaço nos Estados Unidos. Ao contrário dos norte-americanos, que costumam sair de casa cedo e manter um contato eventual com os pais e avós, que muitas vezes moram em outra cidade, os indianos valorizam a relação próxima com a família e dividem a mesma casa por gerações. As datas comemorativas e crenças religiosas dos dois povos também são contrastantes, e Gógol tem que se esforçar para se adaptar a ambas, o que muitas vezes parece impossível.
Contraditoriamente, embora Gógol faça parte de dois mundos completamente distintos, ele não sente que pertence a nenhum deles. O menino não é considerado norte-americano o suficiente pelos estadunidenses, mas também não é aceito como um verdadeiro indiano pela sua família em Calcutá. É como se ele não tivesse uma origem definida, um povo com quem dividir sua história. Esse sentimento de vazio o incomoda. Por isso, desde muito jovem, Gógol vive uma série de crises de identidade marcadas por conflitos internos, bem como disputas com a mãe e o pai.
Ashima e Ashoke esperam que o filho se interesse pela cultura da Índia, valorize seus parentes e case-se com uma garota bengali. Ao mesmo tempo, seus amigos e conhecidos norte-americanos o incentivam a ser independente, sair de casa e conhecer várias garotas antes de se casar. Perdido entre essas pressões e expectativas alheias e opostas, Gógol tem consciência de que qualquer uma de suas decisões vai acabar decepcionando alguém. Tentando encontrar seu próprio caminho, por vezes sente que precisa se afastar da família, mas, quando o faz, a saudade dos pais o incomoda. Na companhia dos amigos e das namoradas, Gógol frequentemente tem a impressão de que precisa fingir ser outra pessoa para ser aceito. Por mais que se esforcem, os norte-americanos não são capazes de entender suas origens e seus costumes da mesma forma que seus parentes. Ao mesmo tempo, a família de Gógol não consegue compreender sua necessidade de independência e seus costumes herdados de um país estrangeiro.
Em meio a todos esses dilemas, Jhumpa Lahiri cria personagens cativantes que, embora tenham hábitos diferentes dos nossos, revelam-se próximos de nós porque vivem inseguranças e dúvidas compartilhadas por todos os povos e pessoas. Talvez não saibamos o que é a desorientação causada por viver em algum ponto indefinido entre a Índia e os Estados Unidos, mas sabemos como é sentir que não pertencemos a lugar nenhum. Vivemos a experiência de passar por conflitos geracionais com nossos pais e, como Gógol, sentimos na pele a aflição de precisar tomar decisões difíceis sem nunca podermos ter certeza de que fizemos a escolha certa.
O Xará me ensinou muitas coisas sobre a cultura indiana, mas o livro vai muito além disso. Também traz reflexões sobre identidade, família, relacionamentos, individualismo, literatura e sobre o sentido da vida. Lahiri me cativou com esse romance, e mal posso esperar para ler outros trabalhos da autora. Espero que essa resenha cumpra o papel de ser um incentivo para que você também tenha a oportunidade (e a satisfação) de lê-la.
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