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As polêmicas de Jude, o Obscuro

  • Foto do escritor: Alice Castro
    Alice Castro
  • 7 de jan. de 2024
  • 5 min de leitura

Foto de Zoran Kokanovic na Unsplash

Escrito pelo poeta e romancista inglês Thomas Hardy, Jude, o Obscuro tornou-se um clássico da literatura inglesa, mesmo com sua recepção conturbada na época em que foi lançado como folhetim, em 1894. Alguns trechos da obra chegaram a ser suprimidos na época porque foram considerados chocantes demais para o público púdico e conservador da Inglaterra vitoriana. Mas os esforços dos editores para evitar as polêmicas geradas pela narrativa não foram tão bem sucedidos, porque os temas tratados no romance, apresentados pelo autor de uma perspectiva que estava muito à frente de seu tempo, foram o bastante para impactar seus contemporâneos.

Não é por acaso que a obra perturbou a paz de muitos críticos ferrenhos. Jude, o Obscuro é recheado das mais variadas críticas sociais que colocam uma pedra no bem lustrado e estreito sapato da tradição. Explorando questões como a diferença de oportunidades entre as classes sociais e o contraste que existe entre a natureza humana e as regras e convenções que tentam moldá-la à força, a narrativa de Hardy provoca a igreja, a academia, a elite e a sociedade de forma geral. Mas o tema tratado por Hardy que mais colaborou para agitar o vespeiro foi o divórcio, já que o rompimento de laços matrimoniais no século XIX era considerado uma ofensa gravíssima. 

O autor foi acusado não só de defender como de incentivar o divórcio em Jude, o Obscuro. A maior parte da crítica da época dedicou tanto espaço para essa polêmica que os outros pontos levantados pelo livro foram praticamente ignorados. Felizmente, os tempos mudaram, e a crítica mais recente conseguiu perceber que existem várias camadas a serem exploradas no romance além dos casamentos conturbados.

De fato, o livro provoca o leitor a pensar sobre diversas questões existenciais, a perceber como é difícil escapar das caixas e moldes sociais que buscam uniformizar todas as pessoas, eliminando aos poucos sua individualidade. É claro que existem aqueles que resistem a essa despersonalização, mas, exatamente como Hardy, eles normalmente sofrem as consequências de sua rebeldia, sendo constantemente perseguidos e condenados por não se conformarem às imposições de seu meio.

Como um brinde à coragem de Hardy e para te encorajar a ler o livro, eu decidi fazer esta resenha de Jude, o Obscuro, que não contém spoilers.



 


Jude Fawley pode ter nascido em uma cidade pequena no interior da Inglaterra, mas isso não o impediu de desenvolver grandes ambições. O sonho do garoto, incompreendido pelos outros habitantes de Marygreen, que em geral tinham pouca educação formal e trabalhavam no campo, era ir para a universidade e se tornar um homem do conhecimento. Assim, quando seu professor mais admirado, o senhor Phillotson, deixa a cidade para buscar melhores oportunidades em Christminster, uma região conhecida por suas universidades, Jude fica determinado a seguir os passos do mestre.

O garoto se sente um peixe fora do aquário em Marygreen. Ele gosta de estudar, é gentil com os animais e reflete demais sobre tudo, enquanto os habitantes de sua cidade são pessoas práticas que enxergam os animais como forma de sustento e os livros como perda de tempo. Os vizinhos zombam das intenções elevadas de Jude, porque sabem que ele, com sua origem humilde, tem pouquíssimas chances de escapar daquela realidade. Afinal, as universidades são caras e exigem muitos anos de estudo. Mas nada disso desencoraja o jovem Jude, que adquire o máximo de conhecimento que está ao seu alcance e começa a aprender grego e latim em livros de segunda mão.

Jude adoraria poder dedicar todo o seu tempo para os estudos, mas desde criança trabalha para ajudar a tia a manter a família e só pode se dedicar aos livros nas poucas horas livres. Anos mais tarde, buscando um pouco mais de independência e dinheiro que lhe permitam sair da cidade, aprende o serviço de entalhador e consegue alguns trabalhos restaurando construções antigas. Recebendo pouco pelos serviços, não demora a perceber que, naquele ritmo, vai demorar muito tempo para juntar recursos a ponto de poder cursar uma universidade em Christminster, mas segue firme no plano apesar dos muitos obstáculos que se interpõem em seu caminho, como um casamento infeliz.

Após várias decepções, Jude acaba conseguindo se mudar para Christminster com muita dificuldade. Ver as universidades de perto pela primeira vez é um momento especial para ele, mas com o passar do tempo fica evidente que, embora Jude possa entrar naqueles prédios como trabalhador para fazer reparos, ele tem pouquíssimas chances de ser aceito como um estudante, apesar de sua inteligência e dedicação. Para aquelas instituições, a linhagem de Jude interessa mais do que o seu potencial.

Jude fica devastado quando percebe como havia se iludido pensando que poderia ser alguém além de um trabalhador comum e só não perde a cabeça porque se apaixona por sua prima, Sue Bridehead. A jovem é inteligente como ele e não se importa de falar o que pensa sobre a mente fechada da sociedade em que vivem. Como os peixes fora do aquário que são, os dois encontram consolo na companhia um do outro. Mas sua aproximação não deixa de ser conturbada, porque ambos estão amarrados pelo casamento a outras pessoas. Como Jude, Sue também vive um casamento infeliz, que consome aos poucos sua vitalidade.

São dois personagens excepcionais, que desafiaram tudo e todos em busca de um futuro diferente daquele que lhes tinha sido imposto e acabaram percebendo que continuam encurralados pelas muralhas levantadas pela sociedade. Suas ambições foram destroçadas pelo contexto e sua felicidade conjugal está sendo arruinada por casamentos que não podem ser desfeitos sem graves consequências para todas as partes. Eles encontram a felicidade um no outro, já que tudo o mais parece lhes ter sido negado, mas seu relacionamento não é visto com bons olhos e o passado volta para assombrá-los sempre que tentam seguir em frente e construir um novo futuro. 

Jude, o Obscuro, tem uma atmosfera de fato obscura. Chove muito ao longo de toda a narrativa, os personagens estão rodeados de uma arquitetura antiga e de pessoas pouco amistosas, os cenários são cinzentos e os interiores são sombrios e claustrofóbicos. Tudo isso reforça a sensação de que Jude, apesar de toda a sua inteligência, disposição e potencial, é um pássaro enjaulado, assim como Sue. Os dois são capazes de ver a luz, de sonhar com um mundo diferente, menos apegado a crenças e convenções, mas seus arredores continuam obscuros, empurrando-os para as sombras.

O livro instiga o leitor a pensar sobre como a sociedade tenta apagar aqueles que não se enquadram em suas molduras. Em nome de uma falsa noção de ordem e harmonia, que não passa de um desejo de manter as aparências e estruturas vigentes, a liberdade e o bem-estar individuais são constantemente sacrificados. Quem não consegue se adaptar ao padrão é atormentado pelo julgamento dos demais e por dilemas internos de consciência, já que o que somos ensinados a adotar como bom e justo constantemente entra em conflito com o que a razão e a experiência pessoal nos permitem perceber como bom e justo.

O romance de Hardy ajuda a mostrar que não é tão simples quanto o senso comum faz parecer (ou não deveria ser) classificar as situações e os comportamentos das pessoas em claro e escuro. A luz está sempre disputando espaço com a sombra e o que será escondido ou revelado depende da perspectiva de quem vê e de quem segura a vela.


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