Sanguessuga
- Alice Castro
- 20 de abr. de 2022
- 9 min de leitura
Atualizado: 21 de dez. de 2023

Depois de um dia sofrido de trabalho, Dário finalmente consegue desligar o computador, apertando o botão de on/off na velocidade da luz para não ser tentado a conferir as notificações de novos e-mails que pipocam insistentes pela área de trabalho até que o monitor se apague por completo. Convites para reuniões, relatórios e propostas comerciais já estão se empilhando na caixa de entrada que ele passou o dia inteiro tentando esvaziar. São como hidras: a cada cabeça cortada, duas novas brotam para atacá-lo. E os músculos moídos das suas costas deixam bem claro que ele não é nenhum Hércules.
Antes de enfrentar o trânsito lento para casa, Dário coloca o celular no modo avião, sentindo-se imediatamente mais leve quando vê as barrinhas que indicam o sinal desaparecendo na tela do aparelho. Hoje, ele não vai receber nenhuma ligação ou mensagem fora de hora, nenhum pedido de socorro do chefe, do tipo que sempre começa com: “desculpe te incomodar no seu horário de descanso, mas”, e termina com o clássico: “é urgente, pode me ajudar com isso?”. Como se Dário tivesse escolha.
Ele sabe muito bem que dizer não seria o mesmo que colocar o emprego em risco e ainda não abandonou completamente as esperanças de ganhar um aumento, então está quase sempre disponível, trabalhando horas extras sem reclamar e adiando compromissos. Mas essa noite é inadiável. Dário está determinado a não deixar que nada, nem ninguém, atrapalhe os seus planos. Poderia dançar no estacionamento - isto é, se não tivesse que sair dali bem rápido para evitar um assalto.
Ah, ele dirige com a cabeça nas nuvens (ou melhor, na nuvem de fumaça escura do escapamento do carro da frente, que entra pelas suas janelas abertas) pensando no que o espera quando chegar em casa. Admira a lua cheia com uma expressão plena de contentamento, apesar do calor de trinta graus no interior do veículo e do ar poluído que começa a irritar sua garganta. Seu ar condicionado deu o último suspiro há dois meses e ele ainda não conseguiu tirar um dia de folga para levar o carro a uma oficina. Desde então, está tendo que andar com os vidros abaixados, problema irritante que o tira do sério na maior parte dos dias, mas agora ele mal o percebe. Hoje nada seria capaz de abalá-lo. Dário vai se dar ao luxo de dormir oito horas completas, sem interrupções. Há cinco meses que ele não é capaz de realizar esse feito, que está se tornando tão raro quanto um eclipse lunar.
As noites mal dormidas estão transformando seus trinta e dois anos em cinquenta. Quando encara a própria imagem no retrovisor, Dário tem a impressão de estar olhando para uma foto do seu pai, tirada poucos dias antes de o velho morrer de cirrose. Lá estão as mesmas olheiras fundas, as bochechas chupadas e a pele amarelada que denunciam a falta de nutrientes adequados, banhos de sol e exercícios físicos. Neste momento, entretanto, o seu aspecto não está tão deprimente porque seus olhos estão brilhando e a boca está levemente inclinada em um sorriso. A pequena melhora levanta seu ânimo.
Uma hora depois, nosso herói finalmente consegue trocar o terno e a gravata pelo pijama. Dário caminha até a cama com a mesma ânsia desesperada de alguém que estava perdido há dias no deserto e finalmente se depara com um copo cheio de água. O travesseiro nunca pareceu tão macio, o edredom nunca esteve tão sedoso. O colchão o recebe como os portões do paraíso se abrindo e o sono imediatamente começa a se instalar.
Na sua quase inconsciência, os anjos cantam com vozes doces, ninando-o. Pássaros cruzam o céu claro em bandos, dançando ao ritmo da música celeste. Homens, mulheres e crianças brincam em um rio cristalino que desliza calmamente aos pés de uma colina cheia de flores amarelas. Tudo se encontra em perfeita harmonia e Dário está quase atravessando os portões dourados para se juntar aos escolhidos, entrando naquela terra encantada onde não existem boletos e impostos a serem pagos. Mais um passo e ele estará salvo.
Então, bruscamente, o canto doce dos querubins é interrompido por um zunido alto e estridente no seu ouvido direito. O sono escapa. As grades do paraíso se fecham a centímetros do seu nariz. O chão o devora e ele despenca de volta à Terra, arregalando os olhos vermelhos para o despertador em seu quarto escuro. O relógio marca três horas da manhã, como em um filme de terror. E a cena é mesmo terrível, porque lá se foram as oito horas ininterruptas de sono, brutalmente assassinadas.
Dário merecia ao menos um minuto de silêncio em homenagem a sua perda, mas aparentemente até isso seria pedir demais naquela noite amaldiçoada, porque o zunido cruel volta a se repetir em seu ouvido. Ele reconhece o barulho agora e esperneia como uma criança birrenta, socando o travesseiro. Uma, duas, três vezes. Um mosquito, um infernal mosquito, Lúcifer içado das profundezas mais ardentes do inferno para visitá-lo na forma de um inseto e arruinar sua noite perfeita, expulsando-o do Éden.
Seu sangue ferve enquanto ele tenta entender como aquele parasita conseguiu encontrá-lo no sétimo andar do seu edifício, em seu apartamento que mal tem janelas e está localizado no centro mais urbanizado da cidade, onde não há uma única árvore brotando no solo de concreto. Aquela só pode ser uma piada muito cruel do destino. Como se não bastasse enfrentar sanguessugas o dia inteiro no trabalho, Dário ainda vai ser perseguido por eles até mesmo na privacidade de seu quarto?
Não, ele não vai admitir aquele ultraje. Agora as mesas vão virar. Dessa vez, é Dário quem quer ver sangue. Acendendo a luz, ele se levanta da cama bufando como um urso arrancado da hibernação de inverno, os ouvidos atentos ao zunido cada vez mais distante do mosquito, que começa a se afastar quando percebe que a sua vítima está alerta.
Com uma veia pulsando no pescoço, Dário passa seus olhos injetados por cada centímetro do quarto, sem mover um músculo. O zunido silencia, indicando que o mosquito pousou em alguma superfície. Antes que o maldito tenha a chance de escapar para outro cômodo da casa, Dário vai até a sua escrivaninha, alcança a fita isolante na segunda gaveta e veda cada mínima fresta da porta do quarto, preparando a arena de batalha de forma que o inimigo não tenha nenhuma possível rota de fuga.
Quando o serviço está terminado, ele circula pelo cômodo procurando o esconderijo do inseto. Em uma caixa embaixo da cama, Dário tem um inseticida que poderia resolver o problema em alguns minutos, mas ele não pensa em usá-lo contra o mosquito porque matá-lo daquela forma não lhe traria nenhuma satisfação. Seria impessoal demais. Para que a vingança seja plena, Dário precisa sentir a satisfação de esmagá-lo com as próprias mãos.
Pisando firme e sentindo-se um gigante sanguinário que sacode o chão a cada passo, nosso herói inspeciona cada centímetro do quarto, se livrando de qualquer coisa que possa ficar no caminho entre ele e o seu oponente. Dário empurra os papéis que cobrem a sua escrivaninha para o chão, afasta a cadeira, arranca os livros da estante, joga a coberta e os travesseiros em cima de toda a bagunça. Se alguém olhasse a cena de fora poderia pensar que o quarto tinha acabado de ser atingido por um terremoto, mas, apesar do caos provocado, nenhum sinal do mosquito e de seu zunido irritante. O silêncio é mortal.
Dário não se dá por vencido. Ele levanta as persianas, abre as gavetas, revira suas roupas e documentos, olha embaixo da cama, abre caixa por caixa e confere cada prateleira dentro do armário. Sacode seus sapatos e as camisetas penduradas nos cabides, arrasta a estante e as mesas de cabeceira. Nada. Inconformado com a indiferença de seu inimigo, pega uma toalha e começa a espanar cada canto escuro do quarto com a intensidade febril de um espadachim duelando por sua vida. Coloca aranhas de pernas finas para correr e perturba o descanso de alguns montes de poeira acumulada, mas não revela nenhum mosquito.
Com a testa e a camiseta suadas depois de tanto esforço, Dário precisa de um intervalo para recuperar o fôlego. Ele é apenas um homem sedentário e insone, afinal. Senta-se na borda da cama e decide adotar uma nova estratégia. Talvez, se ele ficar bem parado, o maldito inseto tente vir até ele e acabe denunciando a sua posição quando levantar voo. Cinco minutos se passam, sete, dez. Dário não consegue ouvir nada além do escapamento de uma moto estourando na rua. Ele se deita, as mãos cruzadas sobre o peito, os olhos entreabertos para enganar o mosquito. Suas pernas e braços estão expostos como iscas, mas o mar ainda não está para peixe.
Em uma última tentativa desesperada, Dário apaga a luz. Para o seu alívio, o zunido retorna depois de alguns segundos. Com toda a agilidade que ainda restou em seu corpo desacostumado ao esforço físico, ele golpeia o interruptor com toda força, um sorriso maníaco no rosto, pronto para desmascarar o mosquito e exterminá-lo de uma vez por todas.
O quarto se ilumina, mas o sorriso de Dário prontamente desaparece, junto com o mosquito e seu zunido. De repente, o homem começa a se preocupar com a sua sanidade. Estaria alucinando tudo aquilo? Delirando de exaustão? Quantas horas de sono perdido uma pessoa precisa acumular para chegar nesse estado? Ou ele teria queimado os seus últimos neurônios respondendo mensagens urgentes fora do horário de trabalho?
Dário precisa descobrir, mas está com medo da resposta. Com a mão trêmula, ele volta a apagar a luz para tirar a dúvida, e lá está o zunido novamente. Dessa vez, ele chega ao ponto de sentir o inseto pousado em seu braço, mas quando se vira para acender a luz e conferir se a sensação é real, está mais uma vez absolutamente sozinho no quarto. O que quer que o esteja perseguindo definitivamente não é um mosquito. É um aviso, um alerta. A sua cabeça finalmente pifou. Ele precisa marcar uma consulta com um psiquiatra antes que não tenha mais controle sobre seus delírios.
Com a pele formigando, Dário volta a acender a luz, determinado a ligar para algum número de emergência que possa resgatá-lo de si mesmo. Assim que o quarto volta a clarear, entretanto, ele quase cai da cama com o que vê. O teto e as paredes estão tomados de pequenos pontos pretos. Ele fecha os olhos e sacode a cabeça, repetindo em voz baixa: “é tudo um delírio, eles não são reais, eles não são reais, eles não são…”. Mas Dário já não consegue ouvir a própria voz, porque de repente todos aqueles insetos decidiram levantar voo e estão zunindo ao seu redor.
Dário abre os olhos para se encontrar mergulhado em uma nuvem fluida de escuridão. Ele sacode os braços para tentar se desvencilhar da armadilha, empurrar os insetos para longe, mas o gesto só faz com que alguns dos mosquitos sejam atraídos para ele, enterrando suas pequenas agulhas em sua pele e sugando seu sangue.
Dário tenta esmagá-los com as mãos, mas são muitos. Assim que ele consegue atingir um bando deles e os mosquitos se transformam em uma mancha asquerosa de sangue e membros esmiuçados sobre a sua pele, os próximos já chegaram para substituir os soldados caídos. Dário tenta correr para a porta e escapar, mas gira a maçaneta inutilmente. A fita está bloqueando seu caminho. Ele luta para arrancá-la com os dedos escorregadios de suor, mas não encontra a ponta com as unhas curtas. Já está se sentindo fraco com tanto sangue perdido quando se lembra do veneno, escondido na caixa embaixo da cama.
Ele se atira no chão de bruços, como alguém tentando escapar da fumaça letal de um incêndio, e começa a rastejar. O zunido é insuportável e ele não consegue espantar os insetos, por mais que ele agite os braços em torno dos ouvidos. Abrindo caminho em meio à massa disforme de mosquitos, Dário finalmente chega até a caixa e consegue abri-la, pegando o veneno e lançando um jato esbranquiçado na direção da cortina de insetos voadores. Alguns começam a cair em espiral, estonteados. Ele descarrega todo o tubo no ar, inalando com os seus inimigos o cheiro do produto tóxico, que não pode escapar por causa da janela fechada e da fita com que ele vedou a porta. Seus olhos ficam embaçados.
Corpos de mosquito lotam o chão, com as pernas finas esticadas para cima, mas vários ainda continuam circulando furiosos, imunes aos efeitos do veneno. Dário começa a tossir. Ele precisa sair dali, está sufocando. Pontos pretos que não têm relação nenhuma com os insetos que ainda o atacam começam a tomar a sua visão, até que ele não enxergue mais nada.
Quando a polícia arromba a porta do quarto no dia seguinte, a pedido de um vizinho que avisou que o alarme do apartamento do andar de baixo não parava de tocar, os homens encontram o corpo de Dário esparramado no chão, ao lado de um inseticida em spray, com a pele coberta de hematomas. Seu rosto quase roxo e os olhos arregalados e ligeiramente saltados indicavam asfixia por intoxicação. O policial passa por cima do cadáver sem cerimônia para desligar o alarme das 7h da manhã e encara com estranheza os móveis revirados e a larga fita preta que vedava a porta.
_ Mais um suicídio. - ele declara prontamente, sem olhar uma segunda vez para o corpo do pobre Dário.
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