Rebranding do Dia das Mulheres
- Alice Castro
- 8 de mar. de 2022
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de fev. de 2024

No topo do edifício envidraçado mais alto da cidade, cinco executivos estão reunidos em uma sala envidraçada, em torno de uma longa mesa envidraçada. As persianas das grandes janelas estão fechadas hoje para que os homens possam se concentrar exclusivamente na apresentação que acontecerá em breve no projetor, mas todos os olhos estão voltados para o canto escuro da sala, onde uma mulher intrusa se encontra sentada em uma cadeira pequena e cinzenta, que destoa drasticamente do conjunto de belas cadeiras ergonômicas de encostos altos e couro preto lustroso que envolvem a mesa.
_ Vocês devem estar se perguntando por que eu convidei a Lara para a reunião de hoje. - O chefe finalmente quebra o silêncio, ficando de pé e se dirigindo até o projetor para indicar que está prestes a começar sua apresentação. A mão da secretária rapidamente se levanta. - Ah, ótimo. Quer explicar, Lara?
_ Não, senhor. Meu nome é Iara. - ela corrige. Trabalha há dois anos no escritório e seu chefe ainda não consegue se lembrar disso.
_ Ah, claro. - ele faz um sinal brusco com a mão, como alguém que espanta um inseto inconveniente. - Voltando ao que eu estava dizendo. Iara está aqui hoje porque vamos discutir um tema de extrema importância para a nossa empresa, o Dia Internacional das Mulheres. Considerando a data, achei que seria justo termos um pouco de representatividade feminina hoje.
Iara concorda com a cabeça, empolgada. Um dos executivos gira a sua cadeira lentamente para voltar a encarar o chefe e pigarreia para chamar atenção.
_ Pois não? - diz o palestrante.
_ Sem querer ofender, chefe, mas Iara não é capacitada para isso. Ela é uma recepcionista, não entende nada de marketing.
_ Ela é… ham… - o palestrante mexe em seu colarinho, ligeiramente desconfortável. - a única mulher da empresa. Além disso, hoje não precisamos de mais uma pessoa de marketing. Já temos muitos homens capacitados para isso nesta sala. Precisamos de uma boa consumidora. E quem melhor para assumir esse posto do que uma mulher, não é mesmo?
Ele solta uma risada e é rapidamente acompanhado pelos outros. Iara permanece em silêncio e tenta não dar muita importância aos executivos, que lançam olhares indiscretos para as suas pernas firmemente cruzadas. Sobre o colo, ela segura um caderninho, onde anotou suas contribuições para a reunião. Reunindo coragem, ela levanta a voz para ser ouvida pelo chefe em meio às piadinhas e comentários desrespeitosos:
_ Se me permite, senhor, eu não sou especialista em marketing, mas como a única mulher presente, gostaria de fazer algumas observações.
_ Agora não, Iara. Quando chegar o seu momento de falar eu aviso, está bem? - o chefe pisca para ela de forma nada profissional.
Virando as costas para Iara, ele endireita os ombros e liga o projetor. Um gráfico de vendas com barras coloridas aparece no centro da lona branca, com dados referentes ao lucro dos cinco anos anteriores da empresa. Uma linha vermelha mostra a queda das vendas no mês de março.
_ Março sempre foi um mês difícil para a nossa empresa, como todos sabemos. Isso se deve em parte à falta de aproveitamento que damos ao Dia Internacional das Mulheres. Precisamos de ideias para tornar essa data mais comercial.
Iara franze a testa, incrédula. Não era por aquele tipo de reunião que ela estava esperando quando aceitou o convite do chefe, satisfeita por finalmente poder entrar na sala onde as grandes decisões da empresa eram tomadas. Teimosa, ela levanta a mão novamente.
_ Meu Deus, o que dizem sobre mulheres não pararem de falar é mesmo verdade. - brinca o palestrante, arrancando mais risadas da sua plateia. - O que foi, Iara?
_ Senhor, o Dia Internacional das Mulheres é uma data política. Começou com uma marcha em busca de direitos…
_ O que ela quer dizer é que o dia não é muito comercial. - um dos executivos a interrompe, como se Iara precisasse de um tradutor.
_ Exatamente! - o palestrante se empolga, silenciando os dois. - Essa é a nossa oportunidade de fazer um rebranding e transformá-lo em algo lucrativo! Pensem na quantidade de cosméticos, roupas e acessórios que poderíamos vender. É para isso que você está aqui, Iara. Para nos ajudar com ideias. O que você gostaria de ganhar de presente do seu marido nessa data?
_ Eu não sou casada. - ela também já teve que lembrar o chefe desse fato algumas vezes.
_ Namorado, então. - ele respira fundo. - Você não está entendendo o espírito da coisa, Iara.
Iara engole em seco, tentando se recompor e controlar a irritação que sobe pela sua garganta.
_ Vocês não estão me escutando. As mulheres não querem presentes, elas querem…
_ Isso é tolice, mulheres sempre querem presentes. - outro executivo atropela sua fala, revirando os olhos. - Minha mulher adora jóias, elas são caras, mas eu não reclamo do preço se isso fizer ela parar de reclamar um minuto, sabem como é?
Mais risadas. Iara fica absolutamente muda.
_ Ótima ideia! É disso que estamos precisando, cavalheiros. E dama. - o palestrante acrescenta, lançando um olhar na direção da cadeira de Iara, isolada no fundo da sala. - Para nos inspirar, eu trouxe alguns exemplos de presentes que venderam bem no Dia das Mães do ano passado.
O gráfico de vendas no centro da tela é substituído por uma sequência de fotos de caixas de chocolate, brincos, buquês de flores, perfumes e produtos de beleza. Os executivos observam as imagens, desinteressados.
_ E é claro que eu salvei o melhor para o final. - o palestrante comenta, com um sorrisinho.
Iara sente o rosto arder de raiva quando é surpreendida por fotos de modelos loiras magérrimas, usando biquínis decotados, deitadas em esteiras na beira da praia. Alguns executivos assobiam, outros batem palmas, como crianças em um circo. Iara fecha seu caderno com força, mas ninguém está olhando para ela.
_ Isso é uma falta de respeito. - ela finalmente explode. - É exatamente contra esse tipo de preconceito que…
_ Eu avisei, começou a histeria. - um executivo reclama.
_ Ela ficava mais bonita calada atrás da mesa da recepção. - outro comenta, encarando Iara com desdém.
_ Não surpreende que ainda esteja solteira…
_ Foco, homens, foco. - o palestrante finalmente desliga o projetor e acaba com aquele suplício, voltando a ocupar o seu lugar na ponta da mesa. Iara espera que ele reclame dos comentários sexistas dos colegas, mas ele volta ao tema principal da reunião como se nada tivesse acontecido. - Essa coisa de luta por igualdade e direitos simplesmente não vende. Sapatos, cremes, bombons, isso sim enche os nossos bolsos no final do mês. Precisamos esquecer essa história de política e movimentos feministas e fazer as pessoas acreditarem que essa é uma data especial para presentear filhas, mães, esposas, namoradas. Esse é o nosso objetivo aqui hoje. Vamos fazer um rebranding do Dia Internacional das Mulheres!
Os executivos soltam comentários de aprovação e encaram as folhas em branco que trouxeram para a reunião enquanto refletem. Nenhum deles veio preparado. Iara se sente estúpida por ter passado a noite inteira pesquisando e fazendo anotações. Ela tem vontade de gritar, mas sabe que só vai ser expulsa da sala e rotulada de louca se fizer isso.
_ Bom, explorar as inseguranças das mulheres sempre é uma forma de vender mais. - um dos executivos sugere, reclinado em sua cadeira de couro. - Vamos lembrá-las de que precisam emagrecer, de que devem tomar cuidado com as rugas e celulite, esse tipo de coisa.
_ Também sempre podemos colorir alguns produtos de cor-de-rosa e cobrar o dobro do preço por eles. - o colega ao lado sugere, ajustando os óculos no nariz.
_ Esse é o espírito. - o palestrante aponta para os dois, satisfeito. - Vamos parar de associar essa data com luta e força. Marie Curie não vende, colegas. Precisamos exagerar no cor-de-rosa e nas montagens com flores. Também vou mandar o pessoal escrever alguns cartões com mensagens carinhosas, melosas. Mulheres se derretem por isso.
Todos os executivos balançam as cabeças em aprovação, satisfeitos com o trabalho do dia. Iara está esquecida no canto, em completo silêncio, os lábios apertados em uma linha fina. Depois de alguns segundos, o chefe parece se lembrar da sua existência e sorri para ela.
_ Ah, Lara. Pode trazer um café para nós, por favor? Obrigado, querida, não sei o que faríamos sem você.
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