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Por que Letras?

  • Foto do escritor: Alice Castro
    Alice Castro
  • 14 de set. de 2024
  • 5 min de leitura

Foto de Levi Bare na Unsplash

Um estudante/profissional de Letras pode contar com duas certezas na vida: 1) conhecidos vão procurá-lo com frequência para tirar dúvidas como: “esse a tem crase?”, ou para pedir uma revisão de algum texto (de graça); 2) por mais feliz e realizado que o letrista seja, as pessoas sempre vão esperar dele uma justificativa para ter escolhido o curso de Letras, repetindo insistentemente a pergunta que, ao que tudo indica, ninguém quer calar: “Por que Letras?”.

Essa questão pode parecer inofensiva, simples curiosidade ou mera demonstração de interesse, mas, na maioria dos casos, ela é apenas uma fachada aceitável para uma série de outras perguntas subentendidas que não soariam tão bem em voz alta. Quem escuta com atenção, percebe que por trás do “Por que Letras?” se escondem o “por que professor?”, “por que mal remunerado?” e “por que desperdiçar inteligência e potencial desse jeito?”. Acreditem, eu não estou exagerando quando escrevo que algumas pessoas perguntam “Por que Letras?” com a mesma entonação e expressão facial de completo desapontamento que usariam para perguntar “Por que você escolheu o caminho das drogas?”.

Eu me considero uma pessoa tranquila e compreensiva na maior parte do tempo, mas, quando me deparo com esse tipo de atitude, preciso morder a língua para não responder: “Claramente, eu não escolhi o curso pelo dinheiro, porque se esse fosse o caso, você não estaria me fazendo essa pergunta”. Já viu alguém perguntando para um futuro médico “por que Medicina?”, ou para um concursado “por que concurso?”. Aposto que não. O médico e o concursado ganham dinheiro, logo, aos olhos da sociedade, eles não precisam de outro motivo para exercerem suas profissões. Tanto faz se o sonho do médico é salvar vidas ou simplesmente ser respeitado por usar um jaleco. Tanto faz se o concursado gosta do cargo que ocupa ou se só quer bater ponto e receber o salário no final do mês. Quem se importa? Se eles estão ganhando dinheiro, é óbvio que fizeram a escolha “certa”.

Mas o professor, o pesquisador e o escritor, com frequência mal remunerados, e, consequentemente, desvalorizados no Brasil, são percebidos como aqueles que tomaram a decisão “errada” e, por isso, precisam se explicar. Repetidamente. Exaustivamente. Por que alguém em sã consciência escolheria essa carreira?

Cansada de ter que dar sempre a mesma explicação para pessoas que não estão interessadas na minha resposta e nos meus motivos, mas apenas em apontar dedos ou tentar me convencer a mudar de ideia, eu reuni a minha frustração acumulada e escrevi este texto. Se ele não servir para mais nada, ao menos pode ser aproveitado para economizar a minha saliva da próxima vez que alguém perguntar: “Por que Letras?”.

Se querem mesmo encontrar um culpado, podem começar acusando os meus pais e o meu avô. Eles foram os primeiros responsáveis por plantar essas sementes venenosas na minha cabeça, que anos depois virariam árvores com raízes profundas, difíceis de derrubar. Minha mãe (adivinhem: professora) cometeu o terrível crime de ler para mim quando eu era criança, abrindo portas e janelas na minha imaginação. Aberturas por onde podiam entrar ideias assustadoras, ou, ainda mais grave, por onde eu podia escapar e explorar caminhos perigosíssimos. Agravando a situação, meu pai e meu avô contrabandeavam vários livros para dentro de casa e, pasmem, permitiam que eu os lesse. Meu avô também adorava me levar para passear na livraria e me dava liberdade para escolher o livro que eu quisesse de presente. Crianças com livre arbítrio, onde esse mundo vai parar?

Cercada desse tipo de influência, já era esperado que eu também acabaria sendo corrompida pelos livros. Eu os adorava, embarcava em todas as aventuras que eles traziam sem pensar duas vezes. Comecei a acreditar que eu, como aquelas personagens, também podia ser tudo, fazer de tudo. Resultado: fiquei inconsequente. Quando dei por mim, também estava escrevendo. Criando mais histórias de que ninguém precisava, achando que eu também tinha o direito de inventar, vejam a audácia! Eu poderia ter abandonado esse “hobby” e aplicado o meu tempo em “atividades mais úteis”, mas alguns professores me incentivaram a continuar, alimentando ainda mais a chama descontrolada que tomava conta dos meus pensamentos. Realmente, não se pode confiar nos professores. Fazer as crianças acreditarem nos próprios sonhos absurdos, onde já se viu. Um balde de água fria teria sido mais recomendado, para apagar o incêndio que eu estava me tornando.

Como não conseguiram me conter a tempo, queimei tanto que, até quando me tornei adulta e percebi que estava cercada de outros adultos armados de extintores e mangueiras, insisti na minha ideia teimosa e pouco racional de abandonar o meu emprego — a única influência que talvez fosse capaz de me colocar de volta nos trilhos e botar um ponto final na minha tendência incendiária  para seguir outro caminho que “não ia dar em lugar nenhum”: o curso de Letras.

Eu queria ainda mais livros, inacreditável. Não só livros, mas livros que falassem sobre livros. Um desvario. Queria perder ainda mais tempo lendo e escrevendo. Incorrigível. Como se a minha ruína não fosse iminente, no novo curso eu conheci mais pessoas incorrigíveis, que, além de tudo, não queriam tentar me corrigir. Elas me aceitaram como eu era, e, quem diria, até me fizeram acreditar que eu tinha algum potencial onde muitos só enxergavam sonhos inúteis e pilhas de material descartável. Essas pessoas de Letras são do pior tipo: as sonhadoras, as teimosas. As que insistem em corromper os outros falando de livros. Como se palavras e ideias em um pedaço de papel pudessem mudar o mundo…

Talvez elas não possam mudar o mundo, mas definitivamente mudaram o meu mundo. Livros sempre me ensinaram a enxergar a beleza da vida, o potencial das pessoas, a força do conhecimento e da imaginação, o valor da troca de experiências entre seres humanos. Por causa deles, eu “vivo mais porque vivo maior”, como escreveu Bernardo Soares/Fernando Pessoa em seu Livro do Desasssosego. E não importa quantas vezes tentem diminuir o valor do meu curso, do meu trabalho e da literatura, o fato é que nada nunca me fez sentir tão grande quanto esse tipo de aprendizado, liberdade, esperança e felicidade que sempre estiveram esperando por mim no interior de um livro.

Então, sinto decepcionar, mas quem escolhe o curso de Letras não toma essa decisão esperando ficar rico ou famoso. É exatamente o oposto, tomamos essa decisão apesar de termos plena consciência de que provavelmente nunca seremos ricos e famosos. E não se preocupe, não vamos nos esquecer disso, porque uma série de pessoas e situações fazem questão de esfregar nas nossas faces, diariamente, que nunca, jamais, em hipótese alguma, seremos ricos e famosos. Mas, como eu já disse, somos teimosos. Esse é um dos efeitos colaterais de consumir muita literatura, acabamos ficando inconformados, inquietos, inconvenientes. Desassossegados.

Assim, aceitamos a nossa sina de ter que responder, pelo resto dos nossos dias, a bendita pergunta “por que Letras?”, enquanto trabalhamos para construir um mundo menos mesquinho e preconceituoso. Um mundo em que professores não se sintam subestimados e sobrecarregados enquanto escolas e faculdades particulares cobram mensalidades cada vez mais altas. Um mundo que não seja hipócrita a ponto de desprezar os artistas enquanto consome avidamente o produto do seu trabalho (seja na forma de música, cinema, literatura, artes plásticas ou teatro) para conseguir suportar o peso da realidade e sentir-se mais humano.

Felizmente para a nossa sociedade, nem todo mundo tem por único objetivo na vida aumentar o extrato da conta bancária. Alguns preferem acreditar que existem outras coisas, muito mais valiosas, embora difíceis de precificar, pelas quais vale a pena lutar nessa nossa breve jornada terrestre.

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