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Chantecler

  • Foto do escritor: Alice Castro
    Alice Castro
  • 9 de fev.
  • 5 min de leitura

Quando eu era pequena, gostava de assistir a um desenho animado que contava a história de um galo chamado Chantecler. Não me lembro muito do enredo, que era confuso, cheio de aventuras delirantes vividas por animais exageradamente coloridos e parcialmente vestidos, mas lembro-me bem até demais de Chantecler e do vilão, o Grão-Duque. A imagem do Duque me provocava calafrios quando eu era criança, visitou muitos dos meus pesadelos, e ainda causa um pouco de aflição agora que estou revivendo a memória para descrevê-lo. Era uma coruja imensa, que usava uma capa com uma gola alta e afiada como a do Drácula, tinha um monóculo em um dos olhos saltados e cantava óperas arrepiantes tocando um órgão de igreja. Sinceramente, quem cria um personagem sinistro como esse para um filme infantil?

Por motivos óbvios, essa maldita coruja assassina nunca foi apagada da minha memória, mas Chantecler permaneceu por outras razões. De vez em quando, eu ainda me pego refletindo sobre o significado desse enredo de um galo de desenho infantil, que hoje, analisado com a minha maturidade dos quase trinta anos, me parece muito mais profundo do que parecia na época em que eu assistia a filmes sem pensar em seus sentidos e possíveis mensagens subliminares.

Sendo realista, não acredito que os criadores da animação tenham deixado propositalmente mensagens subliminares para serem desvendadas pelo seu público de crianças entre 5 e 8 anos, espectadores que não tinham muitas preocupações além de tentar encontrar uma forma de tirar um bloco gosmento de amoeba do cabelo. O desenho era meio capenga, com todo o aspecto de ter sido produzido com um orçamento reduzido por algum estúdio pouco conhecido que não deve ter ficado mais famoso por causa de Chantecler. Mas eu já estou divagando. Voltemos ao galo.

Chantecler era um personagem cheio de si. Para fazer um trocadilho barato e dispensável,  podemos dizer que ele não abaixava a crista para ninguém. Ele era muito admirado pelos outros galos e galinhas da fazenda porque carregava uma grande responsabilidade nos ombros, ou, mais precisamente, nas asas: fazer a manhã nascer todos os dias com o seu canto poderoso de galo alfa. Isso mesmo, Chantecler se tinha em tão alta conta que acreditava sinceramente que o Sol só acordava porque ele o chamava. Sem o seu canto, todos os outros animais permaneceriam na eterna escuridão e seriam devorados pelo Grão-Duque.

Assim, Chantecler sentia-se o principal responsável pela sobrevivência da comunidade e construíra toda a sua identidade em torno desse poder especial de ter uma voz tão bela que convidava o Sol a se levantar todas as manhãs. Chantecler alimentava essa ilusão até o dia em que, por algum motivo aleatório que a minha memória já deletou, ele se atrasou para soltar o seu canto, e o Sol (ora vejam só), nasceu antes de ele cantar, provando que Chantecler tinha sido uma farsa durante toda a sua vida de galo. Humilhado, ele é expulso (ou foge) da fazenda.

Peço perdão por não me lembrar da narrativa em mais detalhes, mas acreditem, isso não importa tanto aqui. O ponto principal é que Chantecler descobriu que não era o seu canto que fazia o Sol aparecer. Literalmente da noite para o dia, Chantecler teve que cair na real e aceitar que nunca teve poderes especiais, ele não era o centro do universo. Chantecler era apenas um galo. Um galo que sabia tocar violão e tinha o mesmo topete exagerado do Elvis Presley, mas, ainda assim, um galo.

É claro que perceber isso provocou uma forte crise de identidade em Chantecler, crise que é resolvida de alguma forma irrelevante ao final do filme. Como vocês já devem ter percebido pelos meus lapsos de recordação, a animação não é particularmente memorável. Mesmo assim, decidi escrever este texto porque penso que a desilusão de Chantecler pode nos ensinar algumas coisas importantes. Ou, talvez, já saibamos essas coisas, mas precisamos da história aparentemente banal de Chantecler para nos lembrarmos delas. 

Penso que esse é um dos principais papeis de um escritor: nos lembrar de coisas que insistimos em esquecer, fazendo com que permaneçam guardadas em nós, protegidas do apagamento. Então, na forma de uma boa história ou de belas palavras, essas memórias retornam de tempos em tempos para nos visitar e comprovar que ainda temos muito a aprender. E o que podemos aprender com Chantecler? Já vou chegar a isso. Por enquanto, gostaria de fazer outro desvio breve para relacionar a história do galo com um poema de João Cabral de Melo Neto que li recentemente, e que tem tudo a ver com a reflexão que Chantecler despertou em mim.

O poema se chama Tecendo a Manhã e inicia com os seguintes versos: “Um galo sozinho não tece uma manhã/ Ele precisará sempre de outros galos”. É fácil encontrar esse poema na internet e ele é bem curtinho e importante, então, se puder, faça a leitura completa depois. Vai reforçar o que eu escrevi aqui hoje de um jeito muito mais sensível, com toda a beleza e sonoridade da poesia. No momento, vamos nos concentrar nessa ideia de que não cabe a nenhum de nós carregar sozinho o peso do Sol nas costas. Sempre precisaremos dos outros, e sempre seremos maiores ao lado dos outros. 

É algo fácil de entender, mas difícil de pôr em prática. Na maior parte do tempo, aprendemos a competir, não a conviver. Quantas vezes nos colocamos em um pedestal imaginado que, por nos tornar superior aos demais, não nos afasta apenas deles, mas de nós mesmos, da nossa condição natural de galos (seres humanos) em meio a outros galos. Isolados, ouvimos apenas a nossa própria voz, enxergamos apenas o nosso próprio brilho, e ficamos presos em um canto que repete “eu”, “eu”, “eu”, que não pode trazer luz, apenas escuridão. Estamos ficando cada vez menos capazes de ouvir o canto dos outros, de harmonizar com as vozes deles, de perceber a beleza nas diferenças de tons. Precisamos descer do pedestal, redimensionar a nossa autoimagem. 

Se, por um lado, pode ser assustador perceber que não temos tanta importância quanto sempre teimamos em nos atribuir, por outro, é um alívio descobrir que ficamos muito mais leves quando não precisamos carregar sozinhos o peso de nós mesmos na forma de um ego inflado. É isso que podemos aprender com Chantecler. Se você não é o guia, tem o direito de estar perdido. Se não é o dono da razão, não precisa ter todas as respostas e opiniões formadas. E se as outras pessoas não estão ali apenas para serem espectadoras da sua vida, elas podem participar ativamente da sua história, e você pode participar da história delas. 

Construir um novo dia, novas coisas, não está apenas nas nossas mãos, é uma responsabilidade que deve ser compartilhada. Por isso, podemos tirar um tempo para respirar e lembrar que somos apenas humanos. Temos o direito de cometer erros, admitir nossas fraquezas e aceitar ajuda para lidar com elas, porque, no fim das contas, o Sol vai nascer do mesmo jeito. Ele não precisa de alguém que o acorde, quem precisa acordar somos nós. Saibamos silenciar por um instante para escutar o canto dos outros galos e, com eles, tecer novas manhãs.


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