Passagem
- Alice Castro
- 17 de ago. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 18 de ago. de 2022

Às vezes, os temas para os textos do blog surgem com facilidade. Quando eu estou lendo um bom livro ou refletindo sobre uma questão aleatória que decidiu ocupar a minha cabeça, tenho combustível suficiente para escrever. As palavras simplesmente saem, os parágrafos parecem se formar sozinhos. É uma coisa linda de se ver. Infelizmente, nem sempre é assim. Em alguns dias, o tanque onde eu armazeno as boas ideias parece estar sem uma gota de gasolina, e por mais que eu gire a chave na ignição, continuo estacionada no mesmo lugar. É nessas horas que a gente precisa pegar uma carona com uma inspiração emprestada e descobrir aonde isso vai nos levar.
Hoje, eu encontrei o primeiro impulso para o texto em um aleatorizador de palavras da internet, um site esteticamente horroroso que gera uma nova palavra a cada vez que você aperta um botão. Com a minha (falta de) sorte, a primeira palavra sorteada foi barretina, o que, como era de se esperar, não se revelou a melhor das motivações. Então eu trapaceei e apertei o botão de novo. A segunda palavra que surgiu na tela foi passagem, e com isso senti que podia trabalhar. Nasce um texto.
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_ Senhores passageiros, o embarque para o voo 1774, com destino a Belo Horizonte, será realizado agora no portão C. - uma voz metálica soou pelos alto falantes do aeroporto, bem quando Luís tinha acabado de se sentar em um banquinho trêmulo de três pernas para apreciar a sua xícara minúscula de café, que lhe custara o valor exorbitante de dez reais.
_ Mas que merda! - ele deixou escapar assim que espiou o telão mais próximo.
A companhia aérea mudara o local de embarque de última hora e ele acabava de descobrir que o portão C não só ficava na outra extremidade do aeroporto, como no andar superior. Os outros passageiros do mesmo voo, que até então estiveram esperando nos assentos próximos ao portão L, começaram a se levantar e recolher seus pertences para iniciar a longa peregrinação. Luís também teria que apressar o passo se não quisesse correr o risco de perder o avião.
Contrariado, ele baixou os olhos para a xícara apoiada no balcão à sua frente. O café, que há poucos minutos lhe parecera uma dádiva, agora se transformara em uma inconveniência que ele não conseguiria equilibrar em sua corrida desenfreada até a outra ponta do terminal. Ansioso para se ver livre desse problema, Luís se esqueceu de que a bebida ainda estava fumegando e tomou tudo de um só gole, queimando dolorosamente a língua. Ainda com lágrimas nos olhos e com o rosto vermelho (não se sabe se pela raiva ou pela queimadura), ele reuniu sua mala de mão e sua pasta de trabalho e começou a atravessar os longos corredores acarpetados até o portão C.
A escada rolante não estava funcionando e no elevador não cabia um fósforo. Luís teve que subir pela escada comum, trinta e sete degraus sofridos em que ele percebeu que seu sapato novo de couro começava a machucá-lo no calcanhar. Quinze minutos depois, quando finalmente alcançou o local de embarque, estava se perguntando como calçaria os sapatos por cima das bolhas no dia seguinte. Ainda ofegante, entregou a passagem e o documento para a aeromoça, uma mulher apática com um batom rosa choque que lançou um olhar indiscreto para as manchas de suor que haviam se formado embaixo dos braços da camiseta dele.
_ Não sabia que teria que correr uma maratona até o novo portão de embarque. - Luís reclamou, sentindo a língua áspera ao falar.
Em resposta, ela lhe lançou um sorriso supostamente simpático que durou menos de um segundo e voltou a baixar os olhos para a passagem.
_ Aqui diz que o senhor tem direito a uma bagagem de mão.
_ Isso. - Luís apontou para a mala de rodinhas.
_ Mas estou vendo que o senhor também trouxe uma pasta.
_ Ah, essa porcaria aqui? Não pesa nem um quilo. Posso levar embaixo do assento.
A aeromoça balançou a cabeça.
_ Sinto muito, mas o senhor deveria ter informado que tinha duas bagagens de mão quando comprou a passagem. Teremos que cobrar uma taxa extra.
_ Taxa extra? - Luís coçou o queixo, incomodado. - Para levar uma pasta?
_ São as novas regras da companhia, senhor. Se quiser embarcar, precisa pagar.
_ Que seja. Quanto custa essa taxa? - Luís perguntou, sacando a carteira do bolso com impaciência e percebendo que só tinha cinco reais sobrando depois do café.
_ Trinta reais.
Ele riu, achando que a mulher estivesse brincando. Ela permaneceu muito séria.
_ Que dia miserável… vocês aceitam pix?
_ Podemos descontar do seu cartão de crédito mais tarde, se nos autorizar.
_ Certo. Faça isso.
A aeromoça devolveu a passagem e o documento. Luís guardou tudo no bolso interno do paletó e estava pronto para embarcar quando ela apontou para uma pequena balança digital discretamente posicionada ao lado do balcão.
_ Pode subir na balança, senhor.
_ Balança? - Luís encarou o aparelho, desorientado.
_ Sim, para conferirmos o seu peso. Me acompanhe, por favor. - ela o conduziu até a balança com uma mão firme em suas costas.
Aquela mulher estava passando dos limites.
_ A senhora está debochando de mim? - ele elevou o tom de voz, se desvencilhando da mão da aeromoça e olhando em volta, como se procurasse o gerente para fazer uma reclamação.
_ São as novas regras. Quando o senhor comprou a passagem, teve que declarar seu peso. - a aeromoça explicou, cruzando as mãos diante da saia. - Vamos conferir se ele não mudou.
Luís ergueu as sobrancelhas, perplexo diante daquela cena que parecia não ter pé nem cabeça. De fato, quando comprara a passagem, há três meses, ele tinha se deparado com um campo esquisito no formulário do site que lhe perguntava seu peso. Na época, Luís não dera muita importância ao fato e imaginara que aquele dado devia servir para que a companhia determinasse se ele precisaria de um assento extra por sobrepeso ou algo do tipo, mas agora percebia que devia ter interpretado a pergunta da forma errada.
_ Que diferença faz se o meu peso mudou? - ele insistiu, desorientado.
_ A companhia agora cobra uma taxa extra por quilo não declarado.
_ Quilo não declarado?! - ele esbravejou, incapaz de se conter.
_ Os outros passageiros estão esperando, senhor. - a aeromoça pressionou. - Se não quiser embarcar, por favor se retire da fila, ou serei obrigada a chamar os seguranças.
Luís ficou observando a aeromoça e os demais passageiros com uma expressão incrédula, mas ninguém se manifestou em sua defesa ou saltou de trás de uma pilastra com uma câmera anunciando que ele estava fazendo parte de um quadro de um programa de humor, então ele não teve outra escolha senão subir na balança. Começava a se arrepender dos dois sanduíches de ovo que comera no café da manhã, antes de sair do hotel para pegar o avião. O mostrador marcou 85 quilos.
_ Três quilos a mais do que o informado. - a aeromoça anotou os dados em um tablet, suas unhas compridas estalando quando batiam contra a tela. Luís teve vontade de arrancar o aparelho das mãos dela e espatifá-lo no chão, mas se conteve porque, sem dúvidas, ele também teria que arcar com os custos de um tablet novo se perdesse a cabeça. - São quinze reais por quilo extra, então o senhor terá que pagar mais quarenta e cinco reais. Somados aos trinta da taxa por bagagem de mão, ficam setenta e cinco. Ele apertou a alça da pasta com mais força para esconder o tremor das mãos e bufou.
_ Eu vou processar vocês assim que chegar em Belo Horizonte. Isso é um absurdo, onde já se viu, cobrar o passageiro pelo peso!
_ É assim que todas as companhias estão trabalhando agora, senhor. Mas fique à vontade para registrar a sua insatisfação em um dos formulários do nosso site. A sua opinião é muito importante para nós. - a mulher respondeu, indiferente. - Boa viagem.
Quase espumando de ódio, Luís virou as costas para ela e marchou até o avião. Aproveitando que estava pagando extra por isso, enfiou a sua mala de mão e sua pasta no bagageiro acima da sua fileira de qualquer jeito, ocupando o máximo de espaço que conseguia, e se atirou no assento desconfortável, sentindo-se derrotado. Assim que se sentou, percebeu que havia um cadeado bloqueando a mesinha à sua frente. Um pequeno adesivo informava:
PARA LIBERAR A MESA, CHAME UMA AEROMOÇA.
Em letras menores, embaixo:
taxa extra: vinte reais.
_ Isso é extorsão! - ele protestou.
O passageiro ao seu lado concordou com um aceno frouxo da cabeça, mas não disse nada. Era mesmo o fim dos tempos. Luís tentou dormir para esquecer o dia estressante, mas mal pegara no sono, foi despertado pela decolagem do avião. Mudou de posição na cadeira estreita. Três horas de voo pela frente. Pensou em ler uma revista para passar o tempo, mas ficou com medo de ter que pagar uma maldita taxa extra por isso e acabou se contentando em ouvir música no próprio celular, com os próprios fones de ouvido. Recusou todos os lanches e bebidas com comentários ácidos dirigidos aos funcionários e teria permanecido emburrado no assento até o final do voo se a natureza não tivesse decidido que era hora de esvaziar a bexiga. Pediu licença para o passageiro sentado no corredor e foi até o banheiro. Na porta, mais um aviso:
PARA LIBERAR A PORTA, CHAME UMA AEROMOÇA.
taxa extra: dez reais.
_ Se querem nos assaltar, porque não arrancam de uma vez nossas carteiras? - ele perguntou para a aeromoça que já estava se aproximando para recolher seu dinheiro. - Minha família também vai ter que pagar um resgate para me tirar do avião quando ele pousar?
_ O senhor quer usar o banheiro? - a mulher ignorou seus protestos e perguntou, com uma voz anasalada.
_ Sim. - ele cedeu, percebendo que era inútil implicar com os funcionários da companhia.
Ela assentiu e sacou seu tablet.
_ Por favor, marque os campos com os itens de que vai precisar. - a aeromoça virou a tela para ele.
Luís passou os olhos pela lista de produtos, todos com o respectivo preço extra informado ao lado: papel higiênico, sabonete, pasta de dente, escova de dente, absorvente, toalhas de papel, lenços umedecidos… ele não conseguiu chegar até o final. Sua ira escalou de forma tão abrasadora que uma pontada forte no peito anunciou que ele tinha alcançado seu limite. Luís se dobrou de dor, levando a mão ao coração. A enfermeira se apressou a acrescentar:
_ Temos um paramédico a bordo, se o senhor quiser atendimento. A taxa extra é de…
Mas Luís nunca descobriria quanto custava a taxa extra para o atendimento médico, porque, com os ouvidos zunindo, ele desabou no corredor da aeronave. Uma mulher sentada ao lado do banheiro soltou um grito, impressionada com a visão do homem caindo com os olhos arregalados a centímetros dos seus pés.
_ Não se esqueça de descontar um valor da conta dele por danos morais aos outros passageiros, Jane. - um rapaz uniformizado anunciou, correndo para puxar os pés do morto e tirar o corpo de vista.
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