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Norberto caiu do céu

  • Foto do escritor: Alice Castro
    Alice Castro
  • 31 de ago. de 2022
  • 5 min de leitura

Na verdade, para ser mais precisa, Norberto caiu do telhado da garagem. Mas, para efeitos dramáticos, vou manter a minha afirmação de que ele caiu do céu. Bem poderia ter sido, já que sua sobrevivência está cercada de pequenos milagres. O filhote de canário que ainda não tinha nem mesmo aberto os olhos não só resistiu à queda de aproximadamente dois metros de altura do ninho, como de alguma forma conseguiu dar a sorte de não ser atropelado, pisoteado ou abocanhado por um dos nossos cachorros (ou pelo gato da vizinha) antes de ser encontrado.

Meu pai foi o primeiro a perceber o corpinho ossudo e depenado do Norberto estirado no chão da garagem. O bebê pássaro estava a centímetros do pneu do carro que ele tinha acabado de estacionar e meu pai só o viu quando abriu a porta para sair e quase pisou nele por acidente. Para o nosso alívio, essa tragédia também não se consumou.

Torcendo para que o filhote não estivesse muito machucado, nos ajoelhamos para observá-lo de perto. A criaturinha era tão pequena e frágil que ninguém conseguia acreditar que ainda estivesse respirando. Mas estava, e, com a nossa aproximação, mostrou que também conseguia levantar o pescoço trêmulo e abrir o bico para piar pedindo comida. Ou socorro. Mas seus pais não estavam por perto para ouvi-lo, e também não conseguimos encontrar o ninho de onde ele provavelmente tinha caído para tentar devolvê-lo e garantir que ele ficaria em boas mãos (ou melhor, boas asas).

Por uma reviravolta do destino, aquele pequeno calombo agora estava por conta própria e só podia contar conosco para sobreviver. O que não era exatamente tranquilizante considerando que nenhum de nós fazia a mínima ideia de como criar um bebê canário. Sendo sincera, também não tínhamos muitas esperanças de que aquele serzinho vulnerável fosse durar mais do que algumas horas. Mas abandoná-lo nunca foi uma opção. Então batizamos o pássaro de Norberto, forramos uma caixa de sapatos na nossa melhor tentativa de criar um ninho improvisado e reviramos a internet para aprender o que podíamos sobre Norbertos, o que comem e onde habitam.


Primeiro dia do Norberto

Logo descobri que a tarefa não seria nada simples. Não é exagero quando dizem que é necessária uma aldeia para criar uma criança. Para se manter bem alimentado, Norberto tinha que comer de hora em hora, das 6h às 21h. Encomendamos uma papinha específica para filhotes de pássaro, mas, enquanto ela não chegava, tivemos que improvisar com outras receitas caseiras que encontramos na internet. Assim, nas suas primeiras horas na nova casa, Norberto comeu uma mistura de ovo cozido e ração triturada de cachorro, para a indignação da nossa cadela, que nunca foi favorável a dividir sua comida, muito menos a ter que disputar a nossa atenção. E Norberto exigia bastante atenção.

Eu assumi a responsabilidade por seus cuidados. No dia do seu resgate, seguindo as recomendações, alimentei o canarinho de hora em hora com a ajuda de um palito longo de madeira, limpei sua pequena caixinha de sapato e fiz o meu melhor para mantê-lo aquecido e em segurança. Quando fui dormir, deixei a caixinha em um lugar seguro no meu quarto, de onde eu pudesse espiá-lo caso ele se mexesse durante a noite. Naquele momento, ele estava dormindo, o corpinho enroscado no ninho, a respiração agitada. Coloquei o despertador para as 6h e me deitei, angustiada. Não queria acordar na manhã seguinte e descobrir que eu tinha feito alguma coisa errada e o pobre pássaro não tinha resistido. Eu sabia que suas chances eram baixas e que eu não deveria me apegar tão cedo para não sofrer mais tarde, mas é claro que tentar reforçar tudo isso para mim mesma era inútil, porque eu já tinha me apegado e já estava sofrendo por antecipação. Não dá pra esperar nada diferente de uma pessoa que fazia questão de enterrar os peixes de aquário quando era criança.

O quarto ainda estava escuro quando o despertador tocou no dia seguinte. Eu desliguei o alarme e me levantei, me aproximando da caixinha devagar, sem saber se queria acabar com o suspense ou não. Norberto decidiu por mim. Antes que eu pudesse conferir se ele ainda estava respirando, o filhote me surpreendeu com um pio animado, pronto para o seu café da manhã. Quase chorei de alívio. Contrariando todas as expectativas, o canarinho tinha sobrevivido à sua primeira noite. E estava com fome, o que era bom sinal.

Norberto não só sobreviveu à sua primeira noite com sua nova família humana, como cresceu muito bem, melhor do que qualquer um poderia ter esperado. Nos próximos dias, suas peninhas amareladas começaram a brotar, ele abriu os olhos e aprendeu a gritar a plenos pulmões quando eu trazia a sua comida. Começou a se movimentar muito mais e fazia uma bagunça rastejando de um lado para o outro na sua caixa de papelão. Poucos dias depois, ele aprendeu a saltar para fora dela e tivemos que comprar uma gaiola para evitar que ele saísse explorando a casa e acabasse se machucando em um de seus voos de teste, ou sendo capturado por um cachorro ciumento.



Além de todos os outros cuidados, agora eu também levava Norberto para tomar sol na gaiola, onde os seus pais, que não conseguimos encontrar nos primeiros dias, às vezes apareciam para visitá-lo. Começamos uma espécie de guarda compartilhada e o casal de canários me ajudava na árdua tarefa de alimentá-lo. Eu ficava tentada a soltar Norberto nesses momentos, mas ainda não tinha coragem de permitir que ele saísse voando por aí tão novinho porque não queria que um pássaro maior aparecesse para levá-lo embora. O canarinho ainda precisava crescer um pouco mais antes de enfrentar a natureza selvagem.

Enquanto isso, eu deixava que ele voasse pelo meu quarto para treinar suas asinhas recém-descobertas. No começo, Norberto dava pulinhos animados e conseguia subir no meu ombro quando eu estava sentada no chão, mas ele não demorou muito a alcançar as prateleiras mais altas e o topo da estante de livros do quarto, as asinhas agora cheias de penas crescidas. E quanto mais alto e mais longe ele voava em seus treinos, mais eu sentia um peso no meu coração, porque sabia que a nossa separação estava se aproximando. Em breve, eu não teria mais motivos para tentar protegê-lo do mundo, porque ele já começava a ser capaz de se cuidar sozinho.

Norberto ficou duas semanas aqui em casa. Ele encheu o lugar com seus piados alegres, encantou a todos com sua energia incansável e sua vontade de viver. Ele comia como se cada refeição fosse a última e gostava de se aquecer no meu colo para dormir quando estava chovendo. As pessoas também dizem que os filhos crescem muito rápido, e essa é outra verdade. Quando eu abri a gaiola para que Norberto se juntasse aos seus pais, fiquei feliz de vê-lo finalmente livre, mas também triste porque sabia que ele faria uma falta imensa. No momento em que decidi acolhê-lo, pensei que eu estava resgatando um pássaro. No dia em que o soltei, percebi o quanto ele também tinha me resgatado.

Aquela criaturinha me deu um propósito no meio da pior fase da pandemia, me distraiu de tudo de ruim que estava acontecendo e me mostrou como vale a pena lutar pela vida, mesmo quando ela não te dá as melhores cartas. A gente não precisa ganhar sempre para se divertir com o jogo. Nunca imaginei que pudesse aprender tanto com um filhote de canário. Por isso, vou repetir: Norberto caiu do céu.




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