Ler é um ato de resistência
- Alice Castro
- 4 de mai. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 22 de dez. de 2023

Quando eu era pequena, eu lia muito, e lia qualquer coisa que aparecesse na minha frente: gibis, enciclopédias, revistas e livros - infantis ou não, com gravuras ou sem. Eu tive a felicidade de crescer em uma família de leitores vorazes que me ensinaram pelo exemplo a ler pelo simples prazer de ler e, em pouco tempo, a leitura passou a ser uma das minhas atividades favoritas.
Para mim, entrar em uma livraria era tão ou mais empolgante do que visitar uma loja de brinquedos, e a única coisa que se comparava à felicidade de poder escolher um livro para levar para casa era a felicidade de começar a lê-lo. No momento em que eu entrava no universo da história, tudo que me rodeava desaparecia, perdia a importância. Mesmo com o cérebro agitado de uma criança que está sempre pensando na próxima aventura, eu era capaz de ignorar qualquer barulho ou distração externa e me concentrar completamente no que estava acontecendo na página.
É curioso pensar que hoje, com vinte e cinco anos, eu tenho muito mais dificuldade para focar na leitura do que eu tinha naquela época. Eu continuo lendo bastante e por prazer, mas agora preciso de silêncio (externo e interno, porque a nossa cabeça também faz muito barulho às vezes) para imergir na narrativa. Também tenho que fazer o dobro de esforço para que a minha atenção não seja roubada por qualquer mínima interrupção, como um pensamento indesejado ou um bipe do celular.
É um fato que a minha concentração já não é mais a mesma, e acredito que ela tenha se deteriorado devido a uma combinação de muitos fatores. Graças a minha ansiedade, a uma rotina corrida e ao uso constante de aparelhos eletrônicos e redes sociais, o meu cérebro parece ter encolhido até atingir o tamanho de meia noz-moscada. Ele se cansa com facilidade de atividades que exigem um nível maior de processamento, como ler um livro, e rapidamente quer fugir para uma opção de entretenimento mais simples e confortável.
Para essa mente “sedentária”, assistir a um vídeo no YouTube, rir de memes na internet ou jogar um videogame são atividades muito mais atraentes do que ler notícias complexas que vão me causar uma ligeira depressão, decifrar longos artigos acadêmicos ou passar horas escrevendo um texto como esse.
Acredite, não é nada fácil forçar o meu cérebro teimoso a espremer um texto por semana para lançar no blog. Assim que eu penso em me sentar na frente do computador, ele se rebela e tenta me distrair com a procrastinação. Quando essa técnica não funciona e mesmo assim eu insisto em abrir um documento do Word, fingindo que não me importo com a sua birra, ele decide se vingar sussurrando na minha cabeça: “Escrever pra quê? Não paga as contas. Tem gente que escreve muito melhor do que você, e além disso, ficar horas na frente do computador pensando em um texto dá muito trabalho.”
Meu cérebro está fazendo isso agora mesmo, enquanto digito esta frase, tentando me sabotar. E ele quase consegue me convencer dessas coisas às vezes. Quase consegue me fazer desistir. De ler, de escrever, de raciocinar. Porque tudo isso dá muito trabalho. E em um mundo que tenta nos empurrar respostas fáceis, fazer perguntas difíceis pode parecer perda de tempo.
Afinal, já temos tantas coisas com as quais nos preocupar. Tantos problemas, tantas obrigações para cumprir em prazos tão curtos. Estamos cansados. A última coisa que sentimos vontade de fazer depois de oito ou mais horas de trabalho por dia é sentar para ler um livro. E isso é totalmente compreensível. Se considerarmos que o dia tem vinte e quatro horas, que deveríamos dormir por oito e trabalhar por oito (o que não é a realidade de muitas pessoas que sofrem com expedientes ainda mais longos), sobrariam oito para o “lazer”. Mas nessa categoria precisamos incluir o tempo que passamos no trânsito, as refeições, exercícios físicos, interação com a família, cuidados com a casa, etc.
Na prática, sabemos muito bem que nunca podemos aproveitar oito horas diárias de lazer. Mal fazemos isso nos finais de semana e feriados, dias que usamos para resolver pendências que não conseguimos solucionar durante a semana atravancada. Assim, o nosso tempo livre é como uma porção escassa de comida que precisa ser racionada entre muitas atividades e não podemos nos dar ao luxo de desperdiçá-lo. Seguindo essa lógica, a leitura e outras atividades igualmente importantes para o nosso desenvolvimento pessoal - que não trazem recompensas imediatas e não parecem tão urgentes quanto outros compromissos - muitas vezes ficam de fora dessa conta, sendo empurradas para depois. E esse depois demora cada vez mais a chegar. Sem perceber, vamos perdendo não só a capacidade de nos sentar em silêncio para ler um livro, como a nossa concentração para realizar qualquer atividade simples, e até mesmo os tempos de ócio que costumávamos usar para refletir.
Esse cenário pode ser deprimente para nós, mas é muito conveniente para os nossos governantes e para aqueles que lucram com a nossa falta de tempo e com a exaustão física e mental que tudo isso gera. Até porque, pessoas cansadas, com a atenção reduzida a um espaço de tempo de aproximadamente dez segundos, são muito mais fáceis de manipular, de comprar e de vender.
Apostando nisso, os poderosos usam de todos os meios que o dinheiro pode comprar para nos afastar da cultura, da literatura, da história, do conhecimento. Eles censuram, perseguem jornalistas, queimam livros, reduzem os salários dos professores, a verba das universidades e de escolas públicas, difamam artistas e autores ou permitem que morram de fome, não investem na manutenção de museus, cinematecas e bibliotecas; deixam tudo perecer. Enquanto isso, patrocinam as redes sociais e as grandes empresas, as responsáveis por nos convencer a aumentar o consumo de produtos cada vez mais descartáveis, passar horas nas academias para ter o corpo parecido com o da blogueira de sucesso, dar o sangue no trabalho na esperança de ostentar um carro novo para os seguidores, assistir ao novo filme massificado de que todo mundo está falando.
Essas empresas são habilidosas como um mágico experiente, que desvia os olhos do público para uma fumaça colorida enquanto esconde seu verdadeiro truque. E assim, quando estamos nocauteados em meio a esse bombardeio de propagandas e preocupações vazias, os poderosos dizem: os livros não vendem, as livrarias estão falindo, os museus estão vazios, as pessoas não se interessam mais por peças de teatro, por filmes independentes, por poesia, por arte. É melhor tirar tudo isso do caminho em nome do progresso.
Essa história não é nova para nós. Ela já se repetiu na realidade e na ficção incontáveis vezes. Está se repetindo neste exato momento. Os elementos e personagens talvez sejam um pouco diferentes, mas o propósito dos vilões é o mesmo: alienar um povo para facilitar a sua dominação. A questão é se vamos aceitar esses cabrestos em silêncio e continuar com os olhos presos nas telas dos nossos celulares, ou se vamos apresentar alguma resistência e mostrar que nos importamos com o que estão tentando arrancar de nós.
Afinal, é quando a cultura se encontra sob ameaça que ela mais precisa de seu povo, e seu povo mais precisa dela. Pode parecer “perda de tempo” sentar para ler um livro, ir ao teatro ou visitar um museu, mas, além de apoiar autores e artistas quando fazemos isso, também estimulamos nosso cérebro a sair da zona de conforto e o desafiamos a fazer um exercício muito benéfico para o nosso raciocínio crítico, concentração, criatividade, memória e inteligência emocional. Saímos da bolha e encaramos o mundo real, sem truques de mágica.
Eu sei bem que não é simples encontrar uma pausa na rotina e escapar das armadilhas que são lançadas para fisgar a nossa atenção a cada minuto do dia, mas é preciso ser teimoso e persistente. É preciso fazer o contrário daquilo que é esperado de nós e oferecer alguma resistência, insistir na arte, na música, na literatura, no que temos de mais valioso. É preciso silenciar os medos, as sabotagens, as críticas, as inseguranças e as dúvidas e continuar digitando. Porque quem cala consente, e eu quero acreditar que ainda temos muitas coisas a dizer.
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