Ler A Metamorfose, do Franz Kafka, pode ser uma experiência transformadora
- Alice Castro
- 23 de fev. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 18 de set. de 2023
Sempre tive curiosidade de ler esse clássico da literatura por sua premissa inédita e desconcertante: um homem acorda um dia e descobre que está metamorfoseado em um inseto gigante.

Era tudo o que eu sabia sobre a história do livro, já que não gosto de me aprofundar demais nas sinopses para não estragar a experiência de descobrir as surpresas da narrativa ao longo das páginas. Por isso, enquanto esperava até ter uma oportunidade de ler a obra, tentei conter minha ansiedade imaginando que rumo a história poderia tomar depois de um evento tão fantástico e, supostamente, devastador na vida de alguém.
Acreditava que Kafka iria usar esse contexto improvável como base para explorar o desespero do personagem ao se perceber preso em uma forma asquerosa que dificilmente poderia ser aceita ou amada por outras pessoas. Afinal, quando eu pensava sobre como alguém reagiria caso se tornasse refém dessa situação absurda, não conseguia conceber nenhuma alternativa além do pânico, do asco e da negação. A vítima provavelmente tentaria se convencer de que tudo não passava de um pesadelo ou delírio, fazendo um grande esforço para encontrar uma forma de pedir ajuda a outras pessoas e procurando desesperadamente meios de despertar ou de retornar ao seu corpo.
Depois de tantas reflexões, fiquei ainda mais curiosa para descobrir se meus palpites sobre o livro estavam corretos. Meses depois, finalmente tive respostas.
ALERTA DE SPOILERS! Essa resenha é completa. Se você ainda não leu o livro, é melhor parar por aqui.
A história:
Gregor Samsa não reagiu como eu havia esperado. Com uma passividade inacreditável, ele aceitou sua nova condição sem um único pulo de susto, ficando mais preocupado com o atraso que aquele corpo de inseto lhe causaria no trabalho do que com o fato de que ele já não era mais um ser humano. Eu definitivamente não contava com essa reviravolta, mas fui surpreendida positivamente por ela. Na minha opinião, é esse detalhe que torna a história tão especial e faz com que os leitores ainda pensem sobre A Metamorfose depois de tantos anos da sua publicação, em 1915.
Apesar da situação surreal que Kafka nos apresenta com trivialidade já nas primeiras páginas, como se estivesse descrevendo um adolescente que acaba de descobrir sua primeira espinha, quando conhecemos mais a fundo o protagonista, a aparente indiferença de Gregor Samsa à sua metamorfose faz muito sentido.
Gregor trabalha em um emprego que detesta porque é o responsável por sustentar sua família. Seus pais são aposentados e sua irmã, Grete, ainda não trabalha. Ele é um caixeiro-viajante e passa a maior parte de seu tempo se deslocando de um lugar para o outro, o que impede que ele se estabeleça e desenvolva relacionamentos significativos. Gregor nem mesmo tem tempo para aproveitar a companhia dos pais e da irmã mais nova na casa que seu salário sustenta. Ele é infeliz, extremamente solitário e sempre teve vontade de abandonar o trabalho, que drena todas as suas energias, mas nunca o fez para não deixar a família desamparada.
Depois que conhecemos sua realidade, entendemos melhor sua indiferença. O “imprevisto” de se perceber convertido em inseto é apenas mais uma das coisas desagradáveis que Gregor se vê obrigado a aceitar sem nenhuma indignação. Para quem abriu mão da própria individualidade e liberdade para sobreviver dentro do sistema, abrir mão do próprio corpo já não parece algo tão catastrófico. Que diferença faria para ele ter pele ou um esqueleto calcário se ainda pudesse continuar exercendo sua função, que parecia ser o único propósito da sua existência?
Assim, Gregor nem mesmo se preocupa sobre como as outras pessoas vão reagir à sua nova aparência, ou como ele vai ser capaz de se comunicar com elas, coisa que eu imaginei que seria um dos principais dilemas do personagem. Na verdade, Gregor só demonstra algum tipo de aflição quando perde o emprego e observa seus pais e a irmã passando por dificuldades sem poder fazer nada para ajudar.
Trancafiado em seu quarto para não ser visto por estranhos e para não incomodar sua família, que sente nojo da criatura na qual ele se transformou, Gregor deixa de ser o responsável pela casa e se transforma rapidamente em um estorvo. Em um golpe duro, ele percebe que nunca foi insubstituível como provedor de sua família, já que os Samsa acabam encontrando formas de compensar a ausência da renda do filho mais velho. Seu pai volta a trabalhar, sua mãe passa a costurar e Grete consegue um trabalho. Já não precisam mais dele e o esquecem em seu quarto imundo. Gregor perde o único propósito que ainda justificava sua existência. Ele acaba morrendo por negligência de sua família, depois de ter dedicado toda a sua vida para sustentá-los. Uma ironia cruel.
O que podemos aprender com esse livro?
Eu gostei muito da experiência de ter lido A Metamorfose e das reflexões que o livro me provocou. Ao longo da narrativa, Kafka toca em pontos muito importantes que nunca vão deixar de ser atuais, porque fazem parte da condição humana. Partindo de uma situação fantástica, a obra consegue revelar feridas extremamente reais, o que nos leva a encarar a passividade que cerca nossas vidas e a pensar sobre como muitas vezes aceitamos o inaceitável.
Com frequência, abrimos mão de quem gostaríamos de ser e da nossa felicidade para servir a um propósito que sequer é nosso, e pode se provar vazio e ingrato apesar de todo o tempo e esforço que dedicamos para ele.
Gregor nunca teve a chance de abandonar o trabalho e descobrir quem era fora dele, de enfrentar seu chefe e sua família e de lutar por uma vida melhor, onde pudesse desenvolver relacionamentos duradouros e, talvez, encontrar alguma felicidade. Ele aceitou sua condição e acabou morrendo por ela. Apesar de toda a sua dedicação, no final, seu sacrifício se revelou tão sem sentido quanto a sua existência.
Finais pessimistas como esses não são bem recebidos por todos, mas com certeza deixam uma pulga atrás da orelha, se estivermos dispostos a refletir sobre os problemas não resolvidos. Agora que conhecemos a história de Gregor, vamos seguir o mesmo rumo que ele e agir com passividade mesmo que isso signifique deixar a nossa humanidade de lado? Ou vamos aproveitar enquanto ainda temos pele e viver, antes que seja tarde demais e ela se transforme em casco?
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