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Ensaio sobre a letargia

  • Foto do escritor: Alice Castro
    Alice Castro
  • 27 de jul. de 2022
  • 5 min de leitura

Atualizado: 25 de dez. de 2023


Photo by Elia Pellegrini on Unsplash

Letargia. Nos últimos dias essa palavra esteve desfilando pelo meu cérebro. Ela estendeu um tapete vermelho para abrir espaço no meio das outras preocupações e pensamentos e agora circula pelo corredor central dia e noite, debaixo de um holofote, me obrigando a refletir e a escrever sobre ela. Na minha opinião, é uma palavra com força e personalidade, apesar de seu significado ser praticamente o completo oposto dessas duas coisas:

Na definição do dicionário, letargia é uma incapacidade de reagir e de expressar emoções; apatia, inércia e/ou desinteresse.

Foi uma sensação que me acompanhou fielmente ao longo desses anos pandêmicos, e talvez você também tenha sido visitado com frequência por ela na mesma época, o que não é de surpreender. A letargia é como uma espécie de fungo. Ela prospera com mais facilidade em períodos sombrios, quando é difícil enxergar a luz no fim do túnel.

No sentido literal, a letargia remete mais a uma ausência do que a uma presença, mas, na prática, a sensação que ela provoca é a de uma ausência muito presente, se é que você me entende. É um sentimento que em alguns dias te invade com tanta intensidade que você se sente um refém dentro do próprio corpo e não consegue fazer muita coisa além de suportar aquele novo parasita indesejado até que ele decida que está cansado de drenar as suas forças e parta para a próxima vítima.

Nesse espaço indefinido de tempo, tudo ao seu redor perde a cor, o brilho, o propósito. Você se sente isolado e cansado, mesmo quando está cercado de outras pessoas e dormindo mais de oito horas por noite. De repente, você passa a ter que fazer um esforço absurdo para tomar decisões cotidianas e terminar tarefas simples e não consegue se empolgar demais com nada, até mesmo quando tenta se refugiar fazendo as coisas que sempre te motivaram no passado. Para completar a desgraça, qualquer mínima dificuldade que apareça em seu caminho se torna um obstáculo aparentemente intransponível, impressão que só serve para te afundar ainda mais na sensação de letargia.

A experiência é parecida com a de estar boiando sozinho na água, deixando que o balanço da corrente te empurre em qualquer direção, com os ouvidos submersos e alheios ao que está acontecendo na superfície. Você simplesmente observa, enchendo e esvaziando os pulmões, sem nem mesmo reagir, muito menos interferir. Não é que te falte energia ou tempo para nadar em busca de terra firme, simplesmente falta vontade. E para quem não tem um destino em mente, continuar boiando parece bem mais cômodo e seguro do que se arriscar a enfrentar as mudanças imprevisíveis da maré.

E esse é o maior perigo dessas fases de letargia. Elas podem ser traiçoeiramente “aconchegantes”, te convencendo de que é melhor permanecer nelas do que tentar escapar. Afinal, um corpo em estado de repouso tende a permanecer em repouso, como aprendemos estudando o Princípio da Inércia do sr. Isaac Newton (sim, eu finalmente encontrei um motivo para aplicar os conceitos de Física que tive que decorar no Ensino Médio em algum lugar).

Essa comparação pode parecer um pouco forçada, mas faz bastante sentido. Entrar em movimento significa enfrentar atrito, gastar energia. E um objeto não consegue sair do lugar se não houver nenhuma força atuando sobre ele, ou se ele estiver paralisado entre forças opostas de igual intensidade. A mesma coisa acontece com uma pessoa que está em estado letárgico. Talvez ela não tenha uma motivação forte o suficiente para impulsioná-la adiante, ou esteja paralisada, sofrendo com o peso da indecisão entre várias forças que tentam arrastá-la para direções conflitantes.

Para quem está preso nesse ciclo, a falta de movimento começa a parecer muito menos ameaçadora do que o medo de dar o primeiro passo na direção errada e acabar descendo a ladeira. Parece mais seguro, menos trabalhoso, simplesmente deixar que as coisas passem por nós. Mas, infelizmente, ao contrário do que a letargia quer nos fazer acreditar, ficar parado não protege ninguém da queda.

Por mais atraente que seja a ideia de tentar se proteger dos golpes da vida vestindo uma armadura de indiferença, o peso dessa casca de metal pode nos afundar se continuarmos usando ela por um período prolongado de tempo. Precisamos sentir as coisas na pele, reagir, tomar decisões, enfrentar os problemas, passar por alguns atritos. E a letargia não vai nos ajudar com isso. Ela talvez impeça os momentos ruins de nos afetarem com mais intensidade, mas, no meio desse processo, ela também acaba repelindo os sentimentos bons.

É por isso que, depois de algum tempo usando a letargia como escudo, não achamos mais tanta graça naquela música favorita, começamos a evitar a companhia das pessoas que sempre nos fizeram bem e paramos de rir de um filme que sempre nos divertiu. A indiferença transforma todas as nossas emoções, com todas as suas diferentes cores e intensidades, em um mesmo sentimento cinzento e embaçado. E essa fase é muito perigosa, porque é quando a letargia começa a se sentir em casa, transformando-se em um inquilino cada vez mais difícil de expulsar.

Precisamos estar atentos aos sinais, porque é fácil ignorá-los quando entramos no piloto automático e não prestamos verdadeira atenção a quase nada. A letargia é algo inevitável que faz parte das nossas vidas e vai voltar em fases complicadas, permanecendo por mais ou menos tempo a depender da situação. Não podemos evitar que ela entre, mas podemos fazer o nosso melhor para que suas visitas sejam cada vez mais curtas, e para que ela não se acomode em um quarto vazio na nossa cabeça.

Conversar sobre esse problema com outras pessoas que também já passaram por isso ou até mesmo tirar um tempo para refletir sobre como ele está nos afetando pode nos ajudar a voltar a enxergar as coisas com mais clareza. Compartilhando um pouco da minha experiência, o melhor jeito que eu encontrei até hoje de combater a letargia é evitando confrontá-la diretamente. Não adianta tentar ser produtivo e sociável em um dia de letargia pesada. Isso pode te deixar ainda mais desmotivado quando você não conseguir completar as tarefas que tinha se programado para fazer, ou acabar tendo uma conversa um pouco desagradável com um amigo. É melhor ir pelas beiradas, resolvendo problemas que exigem menos esforço, fazendo pausas maiores para se distrair com alguma coisa que te faça bem e esperando até que você se sinta um pouco mais disposto para conversar com outras pessoas.

Até essas coisas que parecem simples já vão consumir grande parte da sua energia e disposição, então tente não se cobrar demais em dias como esses. A letargia é irritante, mas ela também pode ser um alerta de que precisamos desacelerar. Tentar aumentar a velocidade enquanto ela está no banco do carona seria como queimar combustível no meio de um congestionamento.




Eu demorei quatro dias pra escrever este texto de menos de quatro páginas. Nos meus dias bons, com a inspiração certa, eu poderia ter escrito ele em algumas horas. Mas, como eu disse no começo, a letargia ainda está desfilando pela minha cabeça e a presença dela torna tudo mais arrastado e pesado. Ainda assim, apesar de ter demorado mais tempo do que o normal para alcançar a última linha, eu cheguei até ela do mesmo jeito. Hoje, eu me orgulho de poder dizer que venci a letargia.


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