Desventuras em série: versão brasileira
- Alice Castro
- 30 de mar. de 2022
- 5 min de leitura

Eu tinha sete anos quando comecei a ler Desventuras em Série e me apaixonei à primeira leitura pela história, pelo senso de humor do escritor e pelas ilustrações marcantes do artista Brett Helquist. Quem ainda não teve a felicidade de ler os 13 livros escritos pelo autor Daniel Handler, que assina as obras com o heterônimo* de Lemony Snicket, talvez conheça a história porque já assistiu ao filme de 2004 com o Jim Carrey ou à série produzida pela Netflix.
Para refrescar a memória dos esquecidos e contextualizar para aqueles que não estão familiarizados com as referências, os irmãos Baudelaire são Violet, Klaus e Sunny, três crianças que perderam os pais ricos em um incêndio suspeito, sua primeira desventura. Seus pais lhes deixaram uma fortuna, mas eles só poderão usufruir dela quando Violet completar dezoito anos. Enquanto isso, os órfãos são deixados aos cuidados de vários tutores e instituições.
Ganancioso, o Conde Olaf passa os treze livros perseguindo as pobres criaturas na esperança de encontrar uma forma de assumir sua guarda e roubar sua herança. Para isso, ele comete vários crimes, intimida, sequestra e até mesmo mata alguns dos tutores e aliados dos jovens. Assombrados pela presença constante do vilão, que sempre consegue enganar todos os adultos com seus disfarces toscos e sotaques forçados, os Baudelaire são acometidos por uma série de infortúnios e tragédias. Por isso o título, Desventuras em Série.
Os livros podem ter sido escritos para crianças, mas até hoje eu tenho tanto carinho por eles que me pego relendo a série de vez em quando. Eu ainda me divirto com a escrita leve e irônica de Daniel Handler e sinto muita nostalgia pelos personagens e pela história, mas uma coisa mudou na minha percepção da saga agora que estou mais velha. Aos sete anos, eu encarava os absurdos do enredo com a certeza de que aquelas situações nunca poderiam acontecer na vida real. Afinal, em uma sociedade evoluída como a nossa, um vilão como o conde Olaf certamente seria desmascarado e punido e os órfãos Baudelaire não seriam abandonados à própria sorte e não se sentiriam tão impotentes. Conforme amadureci, entretanto, percebi o quanto a sátira do autor tem raízes firmes na realidade.
O Conde Olaf é um homem mesquinho, que não tem inteligência, carisma, beleza ou talento algum. Ele é preguiçoso, desleixado, egoísta e manipulador. Não suporta a companhia de pessoas mais instruídas do que ele porque acha a ciência e os estudos uma perda de tempo. O fato de que Violet é inventora, Klaus é um leitor voraz e Sunny uma bebê inteligente para a idade só faz com que ele sinta mais raiva dos órfãos. Olaf detesta livros e qualquer tipo de conhecimento, não tem cultura e odeia quando alguém usa uma palavra complicada ou corrige sua fala, expondo sua ignorância. Ainda assim, ele possui um ego imenso, adora uma plateia e consegue ser admirado por uma legião de apoiadores que estão dispostos a sacrificar sua dignidade e liberdade para serví-lo e agradá-lo, mesmo que nunca sejam recompensados pela lealdade cega que dedicam ao conde, muito pelo contrário. O vilão não gosta de sujar as próprias mãos (figurativamente, porque literalmente elas estão sempre imundas) e usa seus capangas como se fossem produtos descartáveis, ofendendo-os para se sentir superior e abandonando-os na primeira oportunidade para sofrerem as consequências de seus crimes enquanto ele escapava impune. De novo, e de novo, e de novo.
Para quem acompanhava a série e torcia pelo sucesso dos jovens Baudelaire, ver o conde Olaf conseguir fugir ileso repetidas vezes depois de ter provocado tantas desgraças era muito frustrante. Dava uma vontade louca de entrar no livro e tentar mudar o rumo dos acontecimentos, impedir o pior e sacudir os adultos cegos e lentos, que quase nunca escutavam os pedidos de socorro e alertas das crianças. Era nesses momentos que a pequena Alice pensava: isso é claramente um exagero, ninguém seria tão estúpido quanto esses personagens, se deixando enganar pelos truques baratos do conde Olaf com tanta facilidade. Mas a Alice adulta já viveu o bastante para perceber que os livros estavam apenas preparando as crianças para uma dura realidade.
Uma realidade em que vilões não só escapam impunes como são recompensados pelos seus crimes. Uma realidade em que o povo é vendido e explorado e as instituições que deveriam protegê-lo estão tão cegas quanto os adultos da série, fingindo que não escutam os apelos dos órfãos. Uma realidade em que o fanatismo por líderes políticos leva as pessoas a aplaudirem discursos de ódio e a duvidarem da ciência e do conhecimento. Estamos vivendo isso agora mesmo no Brasil.
Para aqueles que ainda insistem em manter os olhos abertos, a visão é desesperadora. Nos sentimos tão impotentes quanto os irmãos Baudelaire enquanto observamos tudo ao nosso redor desabar nas mãos de um vilão incompetente, que infelizmente não é fictício e ocupa a posição central na série de Desventuras Brasileiras.
Esse homem tem muitas características em comum com o conde Olaf, com a diferença de que seus planos malignos não afetam três órfãos, mas um país inteiro, que está mergulhado em dívidas, corrupção, doença, fome e desemprego. Para desviar os olhos do povo desses problemas e escapar impune de seus crimes, ele também cria distrações. Aponta outros culpados, inventa teorias da conspiração, sacrifica seus capangas, se vitimiza, insulta repórteres, questiona cientistas, promove carreatas e atos antidemocráticos. Temos o circo romano novamente, dessa vez sem o pão, e pegando fogo. Apesar disso, uma parte considerável da plateia ainda está aplaudindo, com os ouvidos tapados e os olhos vendados para não escutar os gritos de socorro que partem daqueles que estão sendo atirados aos leões.
Como nos livros, nos impressionamos com a capacidade das pessoas de se deixar enganar pelas mentiras e disfarces toscos do vilão, mesmo com tantas evidências que apontam para a sua verdadeira identidade. Apoiados por essa complacência, os criminosos continuam escapando, triunfando, apesar de todos os alertas daqueles que tentam lutar por um Brasil diferente.
Se alguém se dispusesse a escrever uma série de Desventuras Brasileiras, ela com certeza teria mais de treze volumes, mas poderia começar com o mesmo alerta que introduz o primeiro livro de Lemony Snicket:
Se vocês se interessam por histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro. Vou avisando, porque este é um livro que não tem de jeito nenhum um final feliz, como também não tem de jeito nenhum um começo feliz, e em que os acontecimentos felizes no miolo da história são pouquíssimos. (Mau Começo, Lemony Snicket)
Por sorte, ainda temos tempo de reescrever algumas palavras nesse parágrafo. Tivemos um Mau Começo, mas não precisamos sofrer com um Final Trágico. Ao contrário dos Baudelaire, ainda temos tempo de sacudir algumas pessoas e evitar o pior em outubro de 2022.
*heterônimo - eu fui pesquisar na internet a diferença entre pseudônimo e heterônimo e aprendi que heterônimo é um autor fictício que possui personalidade.
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