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A tão sonhada casa do sr. Biswas

  • Foto do escritor: Alice Castro
    Alice Castro
  • 13 de abr. de 2022
  • 7 min de leitura

Atualizado: 21 de dez. de 2023


Photo by Luke Stackpoole on Unsplash

Livros são como portais. Eles são capazes de nos transportar para qualquer lugar no tempo e espaço, deformar a realidade, construí-la novamente, revelar o que para nós até então era completamente desconhecido ou nos ajudar a enxergar o conhecido de uma nova perspectiva. Durante a leitura, saímos um pouco da nossa própria cabeça e experimentamos os sapatos do narrador ou protagonista, alguém que pode nos levar a explorar caminhos que nunca percorreríamos com os nossos próprios pés e a perceber o quanto a nossa visão do mundo é limitada.

Lendo Uma Casa para o sr. Biswas, do autor V. S. Naipaul, eu saí um pouco da minha zona de conforto e abri um portal que até então ainda não tinha explorado. Pela primeira vez, li uma história que se passa em Trindade e Tobago, cujo protagonista é descendente de uma família hindu. Seu nome é Mohun Biswas e sua história é de uma originalidade bem-vinda para quem, como eu, está acostumado com protagonistas europeus ou norte-americanos. Quando eu terminei o livro, senti que precisava escrever sobre ele. Então fiz uma resenha (com spoilers) para compartilhar a minha experiência de leitura com vocês. É uma porta aberta para visitarmos juntos a casa do sr. Biswas.



Desde que nasceu, Mohun Biswas sempre viveu em casas abarrotadas de gente e foi obrigado a dividir seu quarto, seus pertences e sua intimidade com outras pessoas. Sua família morava em uma casa precária sustentada pelo trabalho braçal de seu pai e de seus irmãos, Prasad e Pratap, que embora fossem mais velhos do que Mohun, tinham apenas 9 e 11 anos. O trabalho infantil já era ilegal na época em que se passa a história, mas os donos das plantações de cana-de-açúcar convenientemente faziam vista grossa para a lei na pequena aldeia onde os Biswas moravam.

Mohun quase teve o mesmo destino de seus irmãos, não fosse pela morte precoce de seu pai, que se afogou em um rio e deixou a família desamparada de seu principal provedor. Sem formas de sustentar os quatro filhos, Bipti, a mãe, teve que apelar para a caridade de sua irmã, Tara, que dera a sorte de se casar com um comerciante relativamente rico e morava em uma zona mais urbanizada da ilha. Assim, os Biswas venderam a casa e se mudaram para a cidade, passando a morar de favor nas propriedades de Tara e de seu marido.

Como eram muitos, não conseguiram ficar todos juntos. A família foi separada e distribuída em diferentes casas abarrotadas. Mohun ficou com Bipti e logo perdeu o contato com seus irmãos, pois sua rotina era outra. Prasad e Pratap foram considerados velhos demais para irem para a escola e continuaram trabalhando, mas Mohun ainda era novo e os tios decidiram que valia a pena instruí-lo. O garoto sofreu para aprender o conteúdo das aulas que nunca tinha frequentado e se sentia deslocado e inferior em meio às crianças da cidade. Seu tio podia ser rico, mas Mohun não morava na casa principal da família e era tratado meramente como um agregado. O único amigo que ele tinha na escola, Alec, nunca o visitou, porque Mohun tinha vergonha de revelar o lugar onde morava.

Foi nesse contexto que Biswas cresceu, sempre com uma vontade imensa de sair daquela casa improvisada e de arrumar um emprego por conta própria para não depender mais de seus tios, que o colocaram para trabalhar no bar da família e pagavam salários miseráveis pelos seus serviços. Determinado a alcançar alguma independência, decidiu aprender a pintar placas e faixas decorativas com Alec, e descobriu que tinha habilidade para isso. Trabalhando como pintor, conseguiu pela primeira vez na vida juntar algum dinheiro que fosse só seu, mas ainda era muito pouco para comprar sua liberdade.

Enquanto isso, o rapaz sonhava. No escasso tempo livre, Biswas lia romances de autores estrangeiros e acabou esbarrando por acidente no britânico Samuel Smiles, que não era romancista, mas rapidamente se transformou em seu escritor favorito. Smiles se posicionava como liberal e era da opinião de que o sucesso dependia apenas do esforço do indivíduo. Seus protagonistas eram batalhadores que sempre terminavam as histórias recompensados por seu trabalho duro. Mohun se identificava com os personagens do escritor e por alguns instantes se permitia acreditar que conseguiria vencer na vida como eles, mas sempre era trazido de volta à realidade quando percebia como suas oportunidades eram diferentes daquelas de seus heróis:

Samuel Smiles era tão romântico e agradável como qualquer romancista e o sr. Biswas via a si próprio em muitos dos protagonistas do autor: era jovem, pobre e imaginava-se esforçado. Porém havia sempre um ponto no qual a semelhança terminava. Os protagonistas de Smiles tinham ambições rígidas e viviam em países em que se podia ter ambições e agir em função delas. (Uma casa para o sr. Biswas - V. S. Naipaul)

A ilha em que Mohun morava não era um lugar para prosperar. Ali não existiam recomeços, perspectivas de um futuro melhor ou alguém que estivesse disposto a recompensá-lo por seus esforços. Assim, Biswas continuou pintando placas e faixas para sobreviver, cada vez mais deprimido ao pensar na vida que ele poderia levar se tivesse nascido em um lugar diferente.

Imaginava-se escapando da ilha todos os Natais, quando era contratado para pintar papais-noéis e pinheiros cobertos de neve para enfeitar as lojas, mesmo que nunca nevasse em Trinidad e Tobago, que o papai noel fosse uma criação da cultura ocidental (o que contrastava radicalmente com a cultura da maioria da população local, composta por imigrantes indianos e africanos) e que a vegetação da ilha fosse muito diferente daquela representada nas pinturas.

A monotonia da vida de Mohun foi perturbada quando, à procura de trabalho, ele foi contratado para decorar as paredes de uma das lojas da família Tulsi. Os Tulsi eram comerciantes com uma boa reputação nas redondezas, uma das famílias mais numerosas e prósperas da cidade, e Mohun ficou animado diante da perspectiva de receber um bom pagamento pelo serviço. Ao longo dos dias em que estava pintando a loja, Mohun conheceu Shama, uma das filhas dos Tulsi que trabalhava como atendente no estabelecimento. O sr. Biswas achou a jovem atraente e decidiu escrever um bilhete para saber se ela pensava o mesmo sobre ele, mas, por um infortúnio do destino, sua mensagem foi parar nas mãos da sra. Tulsi, mãe de Shama e matriarca da família.

Antes que pudesse se desculpar pelo ocorrido, Biswas foi convidado pela mulher a visitar a mansão dos Tulsi, que ele logo descobriu que não era tão imponente no interior quando o exterior fazia parecer. A sra. Tulsi foi direto ao ponto e lhe ofereceu a mão de sua filha em casamento. Intimidado pela situação e sem saber como recuar sem ofender sua honra, a família Tulsi e Shama, Mohun acabou aceitando o casamento com um sentimento de que estava caindo em uma armadilha.

Sem nunca terem trocado uma palavra, Shama e Mohun foram convencidos a assinar os papéis para oficializar a união e, de repente, estavam atados um ao outro pelo resto da vida. Biswas se mudou para a mansão dos Tulsi e se viu mais uma vez como um intruso em uma casa abarrotada. Ele passou a trabalhar para a mãe de Shama por alguns trocados, assim como fazia para seus tios. Mais uma vez, estava morando de favor e sentia-se cada vez mais longe da sua independência.

Nesse ponto da narrativa, o título do livro ganha cada vez mais significado. Depois de passar a vida inteira vivendo “supérfluo e amontoado”, como ele mesmo descrevia sua situação, tudo o que Mohun queria era um espaço no mundo que lhe pertencesse. Uma casa para chamar de sua, uma forma de caminhar com as próprias pernas.

No restante do livro, acompanhamos as desilusões do sr. Biswas conforme sua família cresce em um ritmo assustador, bem como as suas dívidas. Preocupado agora não só com a própria situação precária, mas também com o futuro incerto dos filhos, os problemas estomacais de Mohun se agravam e ele migra de um trabalho a outro tentando desesperadamente juntar dinheiro para comprar a tão sonhada casa. Ele só vai realizar o sonho poucos anos antes de morrer.

A casa do sr. Biswas é uma construção em péssimo estado, com portas que não abrem e outras que não fecham, escadas perigosas, piso desnivelado que range, paredes instáveis e muitos outros problemas, mas ele e sua família adoram o lugar com todos os seus defeitos, simplesmente porque é a primeira casa que eles podem verdadeiramente chamar de sua.



Se você se interessa por histórias que fogem ao padrão, provavelmente vai gostar desse livro. Eu adorei conhecer o senso de humor de V. S. Naipaul, que apresenta sua história com leveza, apesar dos eventos dramáticos que nos fazem perceber como a realidade que ele expõe é pesada. Muitas pessoas, como o sr. Biswas, lutam a vida inteira para sobreviver e passam pelos anos de trabalho e privação sem conquistar metade do que alguns, simplesmente por terem nascido em um berço de ouro, sempre possuíram. É muito fácil discursar sobre esforço e oportunidades, como fazia Samuel Smiles em seus livros, quando o dia de amanhã está garantido. Mas as garantias custam caro e muitos não podem pagar o preço porque, antes de tudo, é preciso comprar o pão.

V. S. Naipaul evidencia essa desigualdade com sua obra. Por isso, Uma Casa para o sr. Biswas não é uma história sobre superação. É um livro sincero que não tenta tornar a realidade mais palatável para aumentar as vendas. Ao contrário dos protagonistas de Smiles, Mohun não é agraciado com o que podemos chamar de um final feliz, superando todas as suas dificuldades e vencendo na vida apesar de sua condição. O sr. Biswas conquista sua casa, o que para ele é algo grandioso, uma espécie de dever cumprido, mas nós, leitores, não conseguimos deixar de perceber como isso é muito pouco. Afinal, em um mundo ideal, ter um lugar digno para morar deveria ser algo básico, um direito garantido, e não um sonho distante, para muitos ainda não realizável.


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