José Saramago, escritor das histórias possíveis
- Alice Castro
- 12 de out. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 16 de nov. de 2024

Respeitável público, chegou o momento crucial (e inadiável) de escrever sobre José Saramago. Confesso que estive fugindo dessa tarefa desde que criei o blog e não me orgulho disso, mas vou passar um pano para mim mesma por esse atraso. A questão é que Saramago é um dos meus autores favoritos desde a adolescência, e, por mais que eu adore falar sobre ele e insista em recomendar a leitura dos seus livros para todas as pessoas que eu conheço (a ponto de ter me tornado irritante), fazer um texto de apresentação de alguém que admiramos tanto é difícil. Por mais que nos esforcemos, sempre ficamos com a impressão de que não fizemos o bastante, de que não chegamos nem perto de representar o quanto aquela pessoa e o seu trabalho significa para nós. Mas, depois de um longo debate interno, eu cheguei à conclusão de que é melhor sentir que não fiz o bastante do que saber que simplesmente não fiz. Então, finalmente, sejam bem-vindos ao universo de José Saramago. Esse escritor me tornou ainda mais apaixonada pela literatura e eu espero que as palavras dele também possam transformar a sua relação com os livros e com a vida.
Filho de camponeses, Saramago nasceu em Azinhaga, uma pequena aldeia portuguesa, em 1922. Começou a se interessar pela literatura e a escrever poesias e crônicas desde muito jovem, mas conquistou maior reconhecimento somente a partir do romance Levantado do Chão, publicado em 1980. Durante o processo de escrita do livro, o autor teve contato direto com a realidade de trabalhadores do Alentejo, experiência essencial para que pudesse desenvolver o seu estilo marcante, pelo qual será sempre imediatamente reconhecido.
Quem já leu alguma obra de Saramago sabe que a experiência pode ser desafiadora e causar estranhamento nas primeiras páginas. Isso acontece porque, entre outras características, o escritor dispensa o uso de travessões para indicar a fala dos personagens, mesclando-as às descrições e aos devaneios do narrador, além de desrespeitar com frequência as regras gramaticais de pontuação para criar um ritmo próprio. Um ritmo que se aproxima da língua falada. Quando nos acostumamos a ele, sentimos que o narrador está mais próximo, sentando-se ao nosso lado para nos contar uma história, conversando conosco. Fazendo pausas na narrativa, ele se dirige diretamente a nós, os leitores. Se estivermos dispostos a escutar com atenção, seremos rapidamente capturados pelo seu estilo, bem temperado com o melhor tipo de ironia, e pelas suas histórias, que misturam fantasia e realismo.
Para mim, essa combinação sempre foi o melhor dos dois mundos. O ingrediente fantástico permite que o autor revele todo o seu potencial criativo para construir enredos mirabolantes, que não estão limitados ao que poderia acontecer na realidade. Com essa liberdade, Saramago pode voltar no tempo e reimaginar eventos históricos de uma nova perspectiva, ressuscitar os mortos ou experimentar os mais variados cenários caóticos e apocalípticos. Por outro lado, o ingrediente realista também permite que ele retrate a nossa sociedade e os sentimentos humanos com sinceridade. Seus personagens passam por situações fantásticas, mas não são deuses, magos, elfos ou criaturas de outro planeta. São pessoas como nós, que habitam o nosso mundo. E podemos conhecê-las mais a fundo durante os momentos de crise retratados pelo escritor, situações extremas que obrigam qualquer um a abandonar os disfarces e mostrar a verdadeira pele. Por isso, os romances de Saramago são um ótimo exemplo de como a fantasia pode nos ajudar a enxergar melhor a realidade.
Até o momento, li cinco livros do escritor: Ensaio Sobre a Cegueira, As Intermitências da Morte, A Jangada de Pedra, O Ano da Morte de Ricardo Reis, e A Caverna. O primeiro, eu li quando estava no ensino médio, e ele rapidamente entrou para a lista dos meus livros favoritos. Lembro que o estilo me incomodou no início, mas a história me seduziu tanto que com o tempo eu não estava mais ligando para a falta de travessões e para os longos parágrafos cheios de voltas e vírgulas. Eu permiti que Saramago me conduzisse por seus caminhos irregulares enquanto uma pandemia de cegueira branca se espalhava incontrolavelmente e revelava o lado mais escuro de alguns seres humanos. Terminei a leitura abalada, porque a história é pesada e convida à reflexões profundas, mas, acima de tudo, eu senti que tinha sido convertida.
Saramago me conquistou com a sua habilidade de contador de histórias, seu senso de humor, sua criatividade e sua potente crítica social. Depois dessa primeira experiência memorável com o escritor, eu recomendei Ensaio Sobre a Cegueira para todos os meus amigos e familiares. Recomendo até hoje. Aproveitando a deixa, se você ainda não leu esse livro, leia!
Depois de Ensaio Sobre a Cegueira, fiz uma nota mental para conhecer outros livros de Saramago, mas como os títulos eram muitos (ele escreveu bastante, para a nossa alegria), sempre ficava na dúvida de por onde eu deveria continuar a explorar o seu universo literário. A indecisão chegou ao fim no curso de Letras, quando minha professora favorita de literatura comentou sobre As Intermitências da Morte em sala de aula. Empolgada, li esse também. Ri e chorei enquanto Saramago apresentava mais um de seus cenários caóticos: do dia para a noite e sem explicação plausível, todas as pessoas de um país inventado simplesmente param de morrer. Em meio à confusão gerada por essa situação sem precedentes, conhecemos uma das protagonistas da história: a morte, nas suas duas versões: em carne e em osso. Você vai entender a piada interna quando ler o livro. Que também virou um dos meus favoritos e que eu também passei a recomendar para todo mundo que eu conheço.
Nos meses seguintes, essa mesma professora acabou se tornando minha orientadora de um projeto de pesquisa sobre A Jangada de Pedra, romance também abastecido de confusões, ironia e críticas sociais, em que Saramago lança a Península Ibérica ao mar, separando fisicamente Portugal e Espanha do continente europeu e aproximando-os do Brasil e do continente africano. O livro, lançado em 1986, quando Portugal e Espanha foram admitidos na União Europeia, é propositalmente polêmico e incomodou muitos adeptos da UE. Mais uma característica que me encanta em Saramago: ele não escreve para agradar ninguém, mas para provocar os leitores e denunciar injustiças sociais que muitos se esforçam por ignorar, esconder, ou até normalizar.
Durante o projeto de pesquisa, também li O Ano da Morte de Ricardo Reis, livro que revisita e reinterpreta um momento histórico traumático para Portugal, sufocado pela ditadura salazarista, e para o mundo. No conturbado ano de 1936, ainda marcado pela Primeira Guerra Mundial e encaminhando-se drasticamente para a Segunda, o falecido Fernando Pessoa volta como fantasma para circular por Lisboa e puxar os pés (e as orelhas) de Ricardo Reis. Na vida real, Reis é um heterônimo criado por Pessoa que existiu apenas no papel, mas, no romance de Saramago, ele ganha vida como personagem. Como o heterônimo, o Reis de Saramago é um homem passivo e contido em suas maneiras, mas, ao contrário do heterônimo, é, surpreendentemente, um mulherengo. As discussões entre ele e Pessoa, por si só, valem a leitura.
Por último, o romance mais recente de Saramago que escolhi ler foi A Caverna, porque fui atraída pela sinopse. Em um mundo onde a maioria das pessoas com recursos vive em um grande centro comercial que limita todo o seu contato com o exterior, Cipriano Algor, um oleiro que produz louças, ainda consegue manter uma vida simples longe desse lugar artificial e vigiado que lhe provoca arrepios. Porém, quando suas louças são substituídas por produtos mais baratos e práticos produzidos no Centro, ele se vê privado do seu sustento e humilhado com a desvalorização de seu trabalho. Desesperado, Cipriano luta para encontrar uma nova forma de se manter e de reencontrar seu valor enquanto resiste à dominação do Centro.
O livro, além de fazer uma crítica ao modelo de produção capitalista, que aliena as pessoas e as desumaniza, também faz pensar sobre a desvalorização do trabalho do próprio escritor nos nossos tempos digitais e acelerados, em que tudo vira mercadoria e a reflexão e a pausa para a leitura e para a apreciação da arte não são encorajadas. Como Cipriano moldando o barro para dar forma às suas peças, Saramago escolhe cuidadosamente as palavras para compor suas histórias. Tanto o oleiro como o escritor sentem que o seu trabalho está sendo ameaçado, e sabem que é preciso resistir à dominação da caverna.
Como eu espero que tenha sido possível perceber por esse breve passeio por algumas das obras de Saramago, o trabalho do autor é bem variado e inventivo. Ele traz críticas afiadas e nos convida a pensar sobre questões incômodas, mas nem por isso deixa de divertir e de lembrar que o riso também pode ser revolucionário.
Explicando o título do texto, também considero Saramago o escritor das histórias possíveis porque, mesmo partindo das mais variadas situações impossíveis, ele nos ajuda a enxergar nelas o que poderíamos ser, caminhos que poderíamos seguir, o mundo que poderíamos construir. E esse maravilhoso “e se” tem o poder de nos libertar da cegueira do cotidiano e de permitir que possamos espiar para além das quatro paredes da rotina. De repente, mesmo cercados de regras, obrigações e imposições, conseguimos respirar e imaginar possibilidades.
Então, que este texto seja uma espécie de agradecimento a Saramago por tudo que ele me proporcionou e ensinou ao longo desses anos, mesmo que eu nunca tenha tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Para a nossa sorte, Saramago nunca desistiu de escrever, apesar de todos os obstáculos que teve que enfrentar em vida, e permanecerá sempre vivo, ao alcance das nossas mãos, em suas histórias.
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